Uma trajetória para ensinar o básico ao mundo: respeito

Uma trajetória para ensinar o básico ao mundo: respeito

Ao ar livre, de pé e abraçados, Willian e a família: as mães Kelli e Dani, a irmã Ketlin e o cunhado Junior. A irmã Ana Luiza está sentada, em frente aos demais.

Willian e a mãe no casamento realizado em 2019. Foto: acervo da família

Chapecó/SC

Dois afilhados, duas mães, uma família dedicada e muitos amigos fazem da vida do jovem Willian, em meio a batalha pela inclusão, uma aventura cheia de conquistas e afeto.

2019 foi um ano marcante. Ano em que a Kelli e a Dani realizaram o sonho de casar, perante familiares e amigos, depois de 12 anos morando juntas. Uma celebração para ficar na memória de todos, principalmente do Willian, que foi um dos padrinhos de casamento e demonstrou toda a emoção por meio de muitas lágrimas e de uma declaração de amor: “Elas são muito lindas. Eu amo minha mãe Dani, eu amo minha mãe Kelli”.

Willian Walter tem 19 anos. É amoroso, inteligente, organizado e cuidadoso. Cursa o Terceiro Ano do Ensino Médio. Na escola, já enfrentou muitas dificuldades, sofreu bullying, mas também viveu aventuras, conquistas e criou conexões que nunca serão esquecidas: as da verdadeira amizade.

O jovem adulto, que tem síndrome de Down, é filho do primeiro casamento da Kelli. Ele mantém contato com o pai (separado da mãe desde 2006), mas é com a Kelli e a Daniele que ele mora, além das duas irmãs: Ketlin, a mais velha, também filha do primeiro casamento, e Ana Luiza, a caçula, fruto do desejo e planejamento da Kelli e da Dani para terem uma filha delas e selarem o amor e a união da família.

Willian está de terno preto e abraça a Dani, vestida de noiva. Ao lado está a Kelli, também vestida de noiva e a Ketlin usando vestido azul. Em frente, está Ana Luiza, de vestido branco
Registro da família no casamento. Willian com as mães e as irmãs.
Foto: acervo da família

“Desde o começo eu entendia que família nem sempre precisa ter o mesmo DNA, e sim, que é onde a gente precisa estar e, ali, como uma grande peça do quebra-cabeça, se encaixar. Foi isso o que eu fiz. Era uma nova rotina, tudo diferente, mas fizemos dar certo”.

Daniele Aparecida Nascimento Jorge, esposa da Kelli.

Nesse núcleo, tão singular e ao mesmo tempo tão plural, também tem espaço pro Junior, namorado da Ketlin (irmã do Willian) há oito anos, e um grande parceiro do Willian. Aliás, Junior e Willian fazem aniversário no mesmo dia, 16 de setembro.

Este ano (2020), o aniversário do Willian foi ainda mais especial. Ele ganhou um presente embrulhado em muita alegria: o segundo afilhado. O recém chegado Gael Felipe nasceu exatamente no dia do aniversário de 19 anos do padrinho. O bebê é filho de um sobrinho da Dani, um rapaz com quem o Willian sempre se deu muito bem.

No coração desse padrinho também mora o primeiro presente que ele recebeu para ajudar a cuidar. Heitor, de dois anos de idade, é filho da prima do Willian que deveria ter nascido quase junto com ele – ela é um mês mais nova, isso porque o Wil se antecipou e nasceu um mês antes do previsto.

Heitor e Gael transformaram a vida do ‘dindo’, que vem amadurecendo e se sentindo cada dia mais adulto e responsável. Willian é um padrinho orgulhoso, atento e que, mesmo em frases curtas, transborda afeto.

“Eu sou muito feliz por ser dindo, cuido dos meus afilhados, amo muito, eles são muito bonitinhos”.

Willian Walter Dellalibera, estudante

Diagnóstico, dor, luta e persistência

A Kelli ainda lidava com a morte da mãe, falecida no mês de julho de 2001, quando o Willian nasceu. Emocionalmente abalada, uma semana após o falecimento da mãe, ela precisou ser hospitalizada. Casada, mãe de uma menina de três anos, grávida, com a mãe doente e que infelizmente veio a falecer, Kelli tinha muito com o que lidar naquele momento.

Apesar de tudo, o bebê nasceu grande e saudável, mas a pediatra pediu uma série de exames. Eram muitos exames para alguém que acabava de chegar ao mundo. Mesmo assim, eles foram feitos e precisaram ser refeitos, o que causou na Kelli um estranhamento ainda maior.

Com dez dias de vida, o Willian ficou amarelo e precisou voltar pro hospital e ser internado. No hospital, ele chorava muito, o que, somado aos exames e a demora para sair o resultado, aumentava a preocupação da Kelli.

Quando ele tinha 30 dias eu resolvi perguntar, numa consulta de rotina, qual era a importância daqueles exames e a pediatra disse que havia suspeita de o Willian ter síndrome de Down.

Aquilo me desmoronou porque eu não tinha consciência do que era a síndrome. A falta de conhecimento te atrapalha.

O resultado do exame saiu num sábado. Por telefone, li o resultado pra médica e ela confirmou a Trissomia do Cromossomo 21. Eu chorei aquele sábado inteiro. Mas eu não entendia porque estava sofrendo, afinal, eu amava o meu filho e queria ficar com ele.

Na segunda-feira seguinte, fui no Capp e ali eu já virei a chave. Com dois meses, ele começou as terapias e estimulação. Dessa fase em diante eu nunca mais chorei”.

Kelli Cristina Jorge, mãe do Willian Walter.

O Willian frequentou o Capp (Centro Associativo de Atividades Psicofísicas Patrick, uma instituição de atendimento a pessoas com deficiência, sediada em Chapecó/SC) até os 13 anos. Lá ele recebia estímulos e as terapias necessárias.

O garoto também foi para a escola regular. No Primeiro Ano a professora achou que ele não precisava de segundo professor. Ele também seguiria a turma junto com os colegas, passando pro Segundo Ano, mas percebendo que ele era menor e mais imaturo que os demais e que não estava em processo de alfabetização, a Kelli solicitou formalmente que o menino permanecesse no Primeiro Ano. O pedido foi autorizado, mas essa foi apenas uma das batalhas que ela precisou enfrentar.

“As séries iniciais foram muito difíceis e isso seguiu até o Nono Ano. Acredito que todos os anos eu precisei fazer uma ata na escola por algum problema.

Teve um ano que a professora chegou a bater nele. Teve um dia que a professora perdeu ele na escola. Situações muito desagradáveis.

Ele sempre foi popular, mas ao mesmo tempo os colegas debochavam muito dele. Coisa que uma fala resolveria, por isso é tão importante falarmos desde cedo sobre inclusão.

Tenho um sentimento de tristeza pelo tempo que ele ficou nessa escola, principalmente por ser tratado como ‘diferente’. A diferenciação era perceptível porque ele e a irmã estudaram na mesma instituição e pela Ketlin eu nunca precisei ir na escola. Já pelo Willian todo ano tinha que brigar por um motivo diferente. E eu brigava mesmo, brigo até hoje, nunca desisti. Quando tu deixa de brigar pelos filhos, nada mais faz sentido”.

Kelli Cristina Jorge.

Apesar do sofrimento, por uma questão de logística – e também por achar que o ano seguinte sempre poderia ser melhor – a Kelli manteve o Willian na mesma escola durante todo o Ensino Fundamental. Ela e a Dani seguiram batalhando pela inclusão efetiva dele, a cada ano, a cada acontecimento diferente. Kelli é formada em Pedagogia (com especialização em Educação Especial) e dá aula desde 2013. A Daniele também é professora, formada em Ciências Biológicas e Pedagogia (com especialização em Gênero e Diversidade Escolar).

Nova escola, novas histórias

Quando chegou a hora de frequentar o Ensino Médio, o adolescente foi transferido para a escola em que estuda até hoje (está concluindo o Médio este ano) e, entre desafios e conquistas, foram muitas as surpresas dos últimos três anos. Na Escola de Educação Básica Tancredo de Almeida Neves, no bairro Efapi, em Chapecó, o Willian foi para o ensino integral, o chamado ‘Inovador’ – tinha aulas todas as manhãs e três tardes. Entretanto, por uma questão de carga horária, o segundo professor não era o mesmo de manhã e de tarde, o que a Kelli achou que seria confuso e acabou transferindo o Willian para o período noturno, pra uma turma de 40 alunos, cheia, grande e sobre a qual havia muitas reclamações.

Preocupada com o filho estudando à noite e em uma turma tão diferente do que estava acostumado, Kelli, que já trabalhava em outras escolas, se inscreveu para ser a segunda professora dele. Iniciava uma nova aventura entre mãe e filho: agora, a ‘mãe Kelli’, passava a ser também a ‘professora Kelli’.

“Este (2020) é o terceiro ano que sou Segunda Professora dele. Quando peguei a vaga, eu fiquei trabalhando 60 horas, mas compensou pela satisfação de ver a evolução dele. O meu objetivo é sempre fazer diferença na vida do estudante. Não é só pelo meu filho, é por todos.

A Educação Especial deveria ser tratada com mais carinho, porque a pessoa que está ali tem uma dificuldade maior. Penso que se você se propõe a fazer isso, deve fazer bem feito.

A rotatividade de segundo professor, essa falta de constância, isso me incomoda muito. E a falta de preparo também. A gente vê que muita coisa precisar melhorar. A primeira é entender que você tem que exigir do aluno não o ‘teu’ melhor, mas o melhor dele.

Eu não posso desistir da Educação Especial, não posso desistir do que eu acredito, porque seria desistir do Willian.

 O Willian é a prova de que tu precisa acreditar nele, desconstruir ideias como a de que são incapazes.

Quando a gente tem conhecimento, o preconceito não existe.”

Kelli Jorge, professora e mãe.

Willian, de terno preto, abraça a mãe Kelli, vestida de noiva. Ambos sorriem.
Willian e a mãe no casamento realizado em 2019.
Foto: acervo da família

No Primeiro Ano do Ensino Médio, na turma do período noturno, apesar da preocupação da Kelli, o Willian foi muito bem recebido e acolhido pelos colegas. A presença do Willian na classe abriu as portas para falar sobre diversidade e respeito às diferenças.

A turma acabou se engajando na causa da inclusão, além de criar um vínculo importante com o Willian. No aniversário dele, em 2018, teve uma festa só com os colegas.

No final daquele ano, não houve prova para segundo professor e os amigos entenderam que era hora de brigar pelos direitos das pessoas com deficiência. Fizeram um manifesto na escola e combinaram: se a escola é para todos, mas por não ter segundo professor o Willian não pode vir, então ninguém vem. Os estudantes fizeram uma mobilização em frente à escola e falaram sobre educação especial. Ao final daquele ano, todos estavam diferentes. O Willian ganhou muito, mas os que tiveram a oportunidade de conviver com ele ganharam mais.

No ano seguinte, a Kelli transferiu o Willian pra turma do período diurno. Mais uma vez, ele foi bem recebido e integrado às atividades. A antiga turma, do noturno, também não o esqueceu e chegou a ‘matar’ um dia de aula no início do ano para ir visitar o Willian em casa, à noite. No fim, as duas turmas queriam ‘ficar’ com ele. Mais uma vez, o jovem fez grandes amizades. E celebrou seu aniversário, em 2019, com os colegas novos e antigos e a alegria em dobro.

“Amo a escola, sou muito feliz lá! Hoje [com a pandemia do Covid-19] sinto muita falta e lembro sempre de todos os amigos.”

Willian Walter Dellalibera, estudante.

A vida em família

Agora, o Willian está no Terceiro Ano e voltou a estudar à noite. Com a pandemia do Covid-19, esse ano ele ficou pouco tempo com a turma, mas acompanha as aulas on-line. Estudante do período noturno e com dois afilhados, o rapaz de 19 anos sente que cresceu e quer dar o próximo passo: ter uma namorada.

Enquanto isso não acontece, ele segue estudando, curtindo a família, ouvindo o som dos Serranos – sua banda preferida –, e sendo o mais organizado da casa. O Willian dobra as roupas com tanta perfeição que elas nem precisam ser passadas. Ele organiza os quartos, lava a louça, tira o lixo, estende a roupa, enfim, colabora com as tarefas da casa.

Ele também tem na irmã caçula, a Ana Luiza, uma grande companheira. Apesar da diferença de idade – ela é 8 anos mais nova –, desde que a Ana chegou na família, todos sentiram que ele evoluiu. A Ana sempre foi muito precoce e eles se tornaram grandes parceiros.

A irmã mais velha, Ketlin, está cursando Fisioterapia, motivada pelo trabalho realizado com o Willian ao longo de toda a vida. Este ano, deu início a um projeto de pesquisa voltado às experiências vividas por mães de pessoas com síndrome de Down.

A ‘mãe Dani’ (como o Willian chama a Daniele) é parte fundamental da família. É a ela que Willian se reporta quando precisa pedir alguma coisa. Ele e as irmãs sempre respeitaram a Dani e normalmente obedecem mais a ela do que a própria Kelli. É ela que vai nas reuniões de pais na escola, por exemplo.

“Quando eu cheguei na família não foi fácil, pois tudo é adequação. Tive que cativar as crianças como filhos.

Em relação ao Willian, a minha dificuldade no começo era entender o que ele falava. O filho da minha madrinha também tinha síndrome de Down, infelizmente ele já faleceu, mas eu já conhecia a síndrome e não havia melindres referente a isso. A Kelli deu autonomia pro Willian muito bem, então ele me surpreendia, sabia se virar”.

Daniele Aparecida Nascimento Jorge, ‘mãe Dani’.

A Dani se integrou à família com uma participação efetiva, que transformou a vida de todos.

“Eu deixei de fazer tudo sozinha, de me preocupar sozinha. Eu não era acostumada a ter alguém que me ajudasse a fazer as coisas. Com a Dani tudo mudou.

Nós sempre compartilhamos tudo, passamos a dividir tudo, desde a responsabilidade com as crianças. Nós temos o objetivo de somar”.

Kelli Cristina Jorge.

Juntas, a Kelli e a Daniele enfrentam também o desafio de viver numa sociedade que muitas vezes julga e discrimina.

“Já vivemos situações de preconceito. Um dia, num passeio da escola, uma pessoa falou pra turma da Ana Luiza que não existia família com duas mães. A Ana disse que tinha duas mães e chamaram ela de mentirosa; os colegas riram dela, e ela chorou muito.

Em outra ocasião, eu fui falar com o professor da Ketlin e ele achou que era alguma brincadeira, que eu era muito ‘escurinha’ para ser a mãe dela.

Essas coisas acontecem, mas a gente não aceita tudo passivamente. A intenção é ensinar as pessoas a terem respeito.

Se cada um se colocasse no lugar do outro e fizesse o seu papel de forma adequada, não teria conflito”.

Daniele Aparecida Nascimento Jorge.

Ao ar livre, de pé e abraçados, Willian e a família: as mães Kelli e Dani, a irmã Ketlin e o cunhado Junior. A irmã Ana Luiza está sentada, em frente aos demais.
Willian e a mãe no casamento realizado em 2019.
Foto: acervo da família

Em uma família tão bem resolvida, não há espaço para preconceito. Por aqui, o respeito e a inclusão acontecem naturalmente. Só é bem-vindo quem puder entender isso. E nem é tão difícil: basta olhar com respeito e, se possível, com uma dose de amor.