Uma pequena fortaleza com um coração gigante

Uma pequena fortaleza com um coração gigante

São Carlos/SC e Chapecó/SC

Gisely precisou aprender a se amar, aceitar seus 1m e 27,5cm de altura e quebrar barreiras para uma vida independente e feliz.

Foram seis anos picando as próprias pernas. Eram duas agulhadas por noite, todas as noites, que ela mesma aplicava. Em seis anos, isso rendeu à Gisely cinco centímetros e meio a mais na altura – sim, o ‘meio’ é muito importante, porque cada milímetro foi conquistado às custas de sofrimento. Sofrimento, aliás, que afetava mais a mãe da Gisely do que ela própria. A mãe não aguentava mais ver aquela situação, mas a jovem insistia: queria crescer. E só parou quando começou a se aceitar do jeito que era: com seus 1m e 27,5cm, o que a enquadra dentro da categoria de ‘nanismo’.

A menina nascida em São Carlos/SC começou a sentir fortes dores no corpo aos três anos de idade. Com o tempo, foi piorando, ficando crônico; ela ficava toda mole e com vermelhidão. O médico da cidade encaminhou para Chapecó/SC, a 45 quilômetros de casa, onde a Gisely foi examinada e recebeu o diagnóstico de artrite reumatoide (doença inflamatória crônica que pode afetar várias articulações) – raro em crianças, mas pode acontecer. Até hoje ela não sabe se nasceu com a doença ou se desenvolveu a partir de uma infecção mal tratada.

A partir do diagnóstico ela passou a vivenciar uma rotina de hospitais e medicamentos. Até hoje toma dez comprimidos por dia, que, por serem fortes, possuem efeitos colaterais. No caso dela, um dos efeitos foi a falta do crescimento.

A família percebeu que a Gisely não estava crescendo como os amigos, mas os exames demonstravam que não havia falta de hormônio de crescimento. Na verdade, estes hormônios estavam sendo barrados pela medicação – mais especificamente por um dos remédios, que possui diversos efeitos colaterais. Porém, justamente este medicamento, ela não consegue ficar sem tomar: sem ele, a Gisely não tem forças para ficar de pé.

Ela seguiu o tratamento e foi aí que entraram as injeções para estimular o crescimento. Na época, estava com 15 anos de idade e uma necessidade adolescente de se parecer mais com o grupo de amigas, de pertencer, de se aceitar e se sentir aceita.

Passou a infância sendo ‘diferente’ das outras crianças porque vivia em hospitais, com dores e debilitada. Na entrada da adolescência, os colegas acabavam rindo dela e excluindo, o que acentuava a má fase que a Gisely vivia consigo mesma. Vivenciou períodos difíceis de questionamento, depressão e não aceitação. Optou pelas injeções como forma de se sentir melhor com a sua própria imagem e perante os demais. Foi assim por anos, até ela entender que a aceitação era um processo de dentro para fora.

“Chegou o momento em que me aceitei do jeito que era. O importante era estar feliz, de bem comigo.

Aprendi a brincar com a situação para ser mais leve e quebrar as barreiras, principalmente no primeiro contato com as pessoas, para que elas não ficassem com receio”.

Gisely Carmen Niedermayer, assistente administrativa e palestrante motivacional.

Gisely subindo uma escada com uma mão erguida e a outra segurando um microfone. Ela tem cabelos loiros, compridos e ondulados e veste saia vermelha, camisa amarela e sapatos vermelhos. Sorri de forma vibrante.
De bem com a vida: Gisely aprendeu a se amar e aceitar.
Foto: acervo pessoal

Construindo a própria história

Criada em uma família que incentivava a autonomia, Gisely começou a trabalhar na cidade de São Carlos e fazer faculdade de Administração em Chapecó. Conheceu pessoas e passou a ver o mundo ‘fora da casa dos pais’. Em Chapecó, por ser uma cidade maior, percebeu que as pessoas conversavam com ela com mais naturalidade. Conseguiu a oportunidade de trabalhar em Chapecó e passou a morar na cidade.

Ela tinha 23 anos, muita vontade de desbravar o mundo e tinha amigos, pessoas que se importavam e estavam prontas para ajudar, e isso fez toda a diferença. Claro que também passou por momentos difíceis. Quando começou a trabalhar em Chapecó não tinha carro e usar o transporte coletivo era muito complicado: ela mal conseguia subir nos ônibus e se tivesse que ficar de pé no transporte era jogada de um lado para o outro. Intimidada com alguns olhares, criou um mecanismo de defesa: focava para frente e não olhava para as pessoas, as vezes até acabava não cumprimentando algum conhecido por evitar os olhares dos outros, mas era uma forma de sobreviver. Hoje, mais segura, ela consegue andar pela rua com naturalidade e tranquilidade.

Há sete anos em Chapecó, Gisely se formou em Administração, com MBA em Gestão de Pessoas e Desenvolvimento Organizacional. Ela já morou sozinha e com colegas da faculdade. Sempre muito divertida, teve facilidade em fazer amigos. Há quatro anos conheceu o Marcelo e estão juntos desde então. O marido tem 1,85 de altura. A diferença no tamanho não é uma barreira no relacionamento. Para Gisely, o mais difícil foi acostumar a dividir a vida com alguém, sendo ela tão independente.

Ao ar livre, Marcelo segura Gisely no colo. Ambos sorriem para a foto.
Gisely e Marcelo estão juntos há 4 anos.
Foto: acervo pessoal

Em casa, foram feitas adaptações simples: banquinhos e escadinhas para que a Gisely alcance onde precisa. A partir da experiência, ela também teve que inventar adaptações: tem um pegador de massa na lavanderia para conseguir ‘pescar’ as roupas do fundo da máquina de lavar. Ela conta sem nenhum constrangimento que já chegou a ficar ‘entalada’ na máquina tentando tirar as roupas de dentro e precisou pegar impulso para se soltar. Na hora, ficou assustada, mas a experiência serviu para que ela entendesse a necessidade de mais uma adaptação. Somente o carro que a Gisely dirige precisa ser diferente. Ele é todo adaptado, por conta dos pedais.

Com adaptações tão simples e pequenas – mas que fazem uma grande diferença na funcionalidade e qualidade de vida da Gisely – ela lamenta que muitas vezes tenha perdido oportunidades de trabalho devido a sua estatura. Acredita que seja por uma mistura de preconceito e de acharem que dará muito trabalho adaptar o espaço para ela, mas, na verdade, ela só precisa colocar a cadeira no modo mais alto e de um apoio para os pés.

“Não é tanto o espaço físico, e sim a cabeça das pessoas que precisa mudar. O pensamento das pessoas é o maior obstáculo, na minha opinião. Tem muito caminho ainda pela frente para evoluir.

Hoje eu não vejo mais tantas dificuldades, mas o fato é que se você tem o preconceito por dentro, se sente mal com apenas um olhar, já se você está bem resolvido, tudo fica diferente.

Felizmente eu aprendi a conviver com isso e agora não me faz mal. Acredito que assim eu consiga inspirar as pessoas a terem uma atitude diferente.

Tenho consciência de que o mais impactante para todos seria quebrar barreiras atitudinais.

Eu não consigo me imaginar diferente, mas consigo imaginar uma sociedade diferente, por todos, mais inclusiva, com olhar mais sensível”.

Atualmente, a Gisely trabalha como assistente administrativa em uma universidade. Ela também faz palestras contando a sua história, com todas as curiosidades, peculiaridades, dores, mas principalmente com muita alegria. Dá pra sentir o entusiasmo que ela tem pela vida.

Gisely transborda gratidão por tudo, principalmente pela família estar bem e não ter mais aquela preocupação tão intensa com ela. Reconhece que a família se privou de muitas coisas por ela e ao mesmo tempo sabe que foi dali que veio todo o seu suporte para a vida. Quando foi diagnosticada com reumatismo, a sentença era de que iria viver até os seis anos de idade, mas a família, especialmente a mãe, não desistiu dela, e isso fez toda a diferença.

Gisely, o marido e os pais estão sentados em cadeiras de praia, em uma praça, tomando chimarrão.
Gisely com a família, seu suporte: os pais Maria Leocadia e Osvaldo e o marido Marcelo.
Foto: acervo pessoal

“A minha mãe, ao mesmo tempo em que queria me superproteger, sofria para me dar autonomia e confiar que eu podia ser independente, pois ela queria o melhor para mim.

Eu nunca imaginava sair de São Carlos, talvez nem da casa da mãe. Não imaginava estudar, me formar, mas parece que em algum momento me deu um estalo: ‘agora chega de ser vítima, vamos pra frente’!

Eu via a minha família se privando por mim e senti que tinha que mudar isso, iniciar uma nova vida, uma carreira profissional.

Hoje penso até em ter filhos, algo que antes eu não imaginaria”.

A Gisely acostumou com as dores, pois diz que são mínimas perto do que já passou. Ela já esteve em cadeira de rodas, sem conseguir ficar de pé, dependendo dos outros até para ir ao banheiro. Aos 30 anos, vive uma vida feliz, independente e tenta sempre encontrar o lado bom das situações.

Gisely se autointitula como uma ‘miniatura’, mas a verdade é que ela é gigante.

“Eu me sinto muito bem e feliz por estar onde estou. Agradeço todos os dias por estar bem, apesar das dificuldades, pois é claro que tem dias ruins, mas a gente sempre tenta pensar positivo. O meu esposo também é super alto astral, então me puxa pra cima.

Eu me vejo como uma pessoa feliz e tenho orgulho porque fui eu que construí isso. Eu podia ter escolhido ficar reclamando, me vitimizando, mas escolhi fazer diferente; decidi construir a minha vida e ser autora da minha história.

Tento despertar na pessoa que tem um problema que ela consiga focar nas coisas positivas, brincar com as situações. É uma satisfação poder ajudar alguém a olhar para dentro”.

Gisely Carmen Niedermayer, assistente administrativa e palestrante motivacional.