Se as dificuldades vêm sempre, o amor não falta nem um dia

Se as dificuldades vêm sempre, o amor não falta nem um dia

Alice e Adriana, de braços abertos, entrelaçados, sorriem e usam camiseta azul com o texto Autismo no Coração.

Assim como o autismo, o ativismo também faz parte da vida de mãe e filha. Foto: Victor Lacerda

Chapecó/SC

Crises, solidão, aprendizado e ativismo: a rotina desafiadora de convívio com o autismo.

Foram muitos os sinais. Um dos primeiros veio do singelo comentário de uma amiga sobre amamentação e o quanto era maravilhosa a troca de olhares naquele momento entre mãe e filho. Na hora, a Adriana lembrou que a Alice não olhava nos olhos dela.

Com seis meses, a bebê ainda não sentava. Ela não gostava de ir no colo de ninguém, nem mesmo dos familiares mais próximos, ia somente com a mãe e o pai. Desde pequenininha, Alice não mostrava interesse em se relacionar com as outras pessoas.

Um dia, bateu a cabeça na grade do berço sem querer e logo depois fez de propósito e repetidamente. Além disso, a menina nem sempre olhava quando era chamada. Antes de completar um ano de idade, passou a fazer pêndulo com o corpo quando ouvia as músicas infantis que gostava.

No começo, a Adriana imaginou que a Alice seria uma criança ansiosa e que ela daria conta de lidar com isso. Com o tempo, resolveu pesquisar, pois achou que os sinais eram indicativos de autismo.

“Eu só pensava nisso, mas não queria que fosse. Eu desconhecia o autismo, não tinha contato. Li sobre transtorno do processamento sensorial e vi que ela tinha todas as características.

Foi uma busca solitária porque o pai dela achava que eu estava louca.

Fomos investigar e o relatório da neuropsicóloga não dizia que ela tinha autismo, mas citava todas as características, pra mim ficou claro que ela tinha, mas pro pai da Alice não.

A Alice tinha um ano e quatro meses quando o neurologista diagnosticou. O pai dela chorou, porque estava com outra expectativa. Para mim foi um alívio porque eu me sentia muito sozinha nessa busca por respostas”.

Adriana Freitag Migott, mãe da Alice.

Desmoronou

A partir do diagnóstico de autismo da filha começaram os problemas no relacionamento do casal. Eles namoravam quando engravidaram, e, mesmo sem planejar, aceitaram bem a vinda da filha. Ambos tinham em comum a vontade de constituir família, de ter filhos.

Durante o pré-natal, o casal contratou uma doula. A Adriana queria parto domiciliar, mas o companheiro achou arriscado. Optaram pelo parto normal em hospital. A gestação foi tranquila, sem intercorrências. Alice nasceu em fevereiro de 2014. 

O nascimento dela foi sereno, bonito e significativo para o jovem casal, que ficou ainda mais unido e fortalecido. Fizeram planos de ter mais filhos, um ou dois. Tudo se transformou quando eles receberam o diagnóstico de autismo da Alice.

“Minha vida mudou imediatamente. Tinha começado Mestrado. Pedi redução de carga horária no trabalho, consegui, mas com salário reduzido. Vieram problemas financeiros e desavenças em todos os campos. Nossa relação, nós enquanto casal, começou a desmanchar.

Ele chegou a me acusar algumas vezes dizendo que o autismo vinha de mim. Ele se decepcionou comigo, porque eu era a mulher certa e de repente deu tudo errado. Depois do diagnóstico, o pai da Alice ficou muito mal, foi demitido, a coisa ‘tava’ horrível.

Surgiu a suspeita de uma doença degenerativa na Alice, marquei consulta com a geneticista em Porto Alegre pra investigar. Perdi uns dez quilos no mês que esperei essa consulta, de tão preocupada. E quando chegou na hora, o pai da Alice não foi pra lá junto comigo. Era só eu e a Alice.

Na viagem eu decidi que não ia continuar esse casamento porque ele não podia me apoiar no momento mais difícil da vida.

A Alice tinha dois anos quando eu saí de casa com ela. Eu nem sabia o que esperar da vida”.

Adriana, mãe da Alice.

Novos desafios

Como no primeiro laudo da Alice não constava o grau de suporte do Transtorno do Espectro Autista, a Adriana se perguntava se o fato do diagnóstico da Alice ter sido dado com a menina tão jovem, praticamente ainda um bebê, significava que ela teria autismo severo. Os médicos ainda não conseguiam dar essa resposta, pois o espectro é grande, mas a mãe via na filha características do autismo clássico: dificuldade na comunicação e interação social, interesses restritos e movimentos repetitivos.

A consulta em Porto Alegre foi um passo dado após dois exames darem resultado compatível com doença de Sandhoff – doença hereditária com forte impacto no sistema nervoso central. Os sintomas incluem atraso cognitivo e cegueira. Não há cura ou tratamento e pode causar morte prematura.

Em Chapecó, os exames foram parte de uma investigação motivada por conta de o autismo em meninas ser considerado mais raro, ou, ao menos, mais difícil de se diagnosticar – a prevalência do autismo é estimada em uma menina para cada quatro meninos.

Na capital gaúcha, a Alice precisou fazer uma série de coletas para exames e demorou quase um mês para sair o resultado. Nos exames apareceu alteração, mas a geneticista informou que a Alice não tinha a doença. Diante da aparente contradição, Adriana não conseguiu tirar isso da cabeça.

No ano passado, resolveu levar a Alice para uma consulta com um médico famoso por atender autistas, em São Paulo. O especialista disse que tinha que investigar mais a possibilidade da doença. Entretanto – e, felizmente –, o resultado de um conjunto de exames descartou de vez a preocupante hipótese de Sandhoff. Um alívio, após anos de incerteza e angústia.

Perto de completar três anos, a Alice recebeu o diagnóstico de autismo com grau 2 de suporte (moderado). Foi com três anos e meio que a Alice começou a balbuciar. As primeiras tentativas de fala surgiram em conversas com os profissionais que a atendiam na equoterapia, a atividade preferida dela.

Com a fala surgindo e a possibilidade de se fazer entender, o nervosismo da Alice diminuiu e a qualidade de vida aumentou. Com cinco anos, ela desceu para o grau 1, conquista surpreendente para alguém que tinha características de autismo severo. Na consulta com o especialista de São Paulo, ele confirmou o autismo leve e a expectativa de um bom desenvolvimento.

Alice sorrindo, com bela paisagem ao fundo (lago e árvores). A menina é loira, tem cabelos longos e ondulados. Veste saia jeans e camiseta branca com contorno colorido da personagem Minnie.
Diagnosticada cedo, hoje Alice é uma menina autista com grau 1 de suporte
Foto: acervo da família

A Alice não tem prejuízo cognitivo. As principais dificuldades envolvem a paciência e questões sensoriais. Na escola, foi acolhida com naturalidade. A instituição tem duas turmas de Primeiro Ano – série que a Alice frequenta – e três alunos autistas nestas classes.

A primeira semana de aulas foi difícil, mas depois a menina começou a acostumar e se apaixonou pela escola. Com a pandemia do Covid-19, conseguiu se adaptar bem às aulas por videoconferência on-line.

Com aval do médico, a Adriana optou por não medicar a Alice até os cinco anos de idade. A menina começou a fazer uso de medicação este ano (2020), o que auxiliou na organização e no controle do nervosismo.

Sonhos destruídos e reconstruídos

Em meio a tantas turbulências, a Adriana conseguiu concluir o Mestrado. Conquistou a redução de carga horária sem redução de salário, possibilitada por uma alteração na Legislação (Lei 8.112 do funcionalismo público, com alteração sancionada em 2016). A Alice evoluía e a qualidade de vida das duas melhorava. Isso não quer dizer que as dificuldades sumiram.

“Houve épocas em que era um nervosismo o tempo inteiro aquele autismo dela. Ainda hoje são muitas crises geradas pelo comportamento obsessivo. Ela tem que ser a primeira a chegar na escola, por exemplo, senão vira uma gritaria e ninguém consegue controlar.

A Alice tem obsessões com o caminho que faz, com a vaga que estaciona. Um conjunto de pequenas obsessões pode virar uma crise. Se estamos indo pra terapia e acontece um imprevisto, não conseguimos mais ir porque ela entra em crise.

É um desafio que se espalha pra outras áreas da vida. Tem muitas coisas que eu também não sei como lidar.

Mesmo antes da pandemia, a gente já tinha uma rotina de isolamento, sem convites para festas ou para ir na casa de alguém. Em alguns momentos cheguei a pensar que era melhor assim, pois se não temos que sair eu também fico menos ansiosa.

Um dos remédios alivia a obsessão, então, agora, tem dia que passa sem nenhum problema. Na verdade, a crise acontece quase todos os dias, mas já foi pior, chegava a ter mais de uma crise por dia”.

Alice e Adriana brincam e sorriem, Adriana carrega a filha nas costas. Ambas vestem camiseta azul
Pequenas conquistas são comemoradas todos os dias.
Foto: Victor Lacerda

A Adriana temia que a Alice não fosse falar, já que até os três anos não emitia nenhum som. Hoje, embora ainda com atraso para a idade, a menina consegue se comunicar. A mãe também acreditava que ela tinha discalculia porque não aprendia matemática, embora tenha se alfabetizado sozinha. Descobriu que era só ter paciência e respeitar que a Alice fizesse os cálculos no tempo dela.

A mãe também pensou que a filha não tivesse empatia e nem vontade de se relacionar com os outros. Entretanto, percebeu que a menina quer interagir, mas não sabe a resposta para cada interação: não identifica pequenos sinais e subjetividades para falar na hora certa, por exemplo, mas demonstra cada vez mais amor pelas pessoas, inclusive com abraços.

Mesmo tendo reagido bem ao diagnóstico de autismo da filha, Adriana sentiu que todos os seus sonhos e planos haviam sido destruídos a partir desse novo cenário. Um deles, era o de viajar, um sonho que parecia ter sido quebrado pelo autismo, mas que, aos poucos, ela começa a ver que é possível, desde que seja feito com muito diálogo e planejamento.

“Ganhei de novo os meus sonhos, pois por muito tempo achei que eu não poderia fazer plano nenhum. Hoje em dia já vejo os potenciais. Acalmei o coração: o que vier, a gente vai encarando.

O pior do autismo, o mais difícil, é a ansiedade de não ter uma vida livre, de curtir um dia que não foi planejado. Sempre tem aquele medo de que ela é uma ‘granadinha’ que vai explodir a qualquer momento; medo do que vai acontecer a seguir.

Sinto que me privo de muitas coisas para não incomodar os outros com as reações dela.

Eu realmente gostaria que as outras pessoas se importassem um pouco, olhassem com interesse genuíno. Todo mundo só olha enxergando a deficiência primeiro, queria que pudessem olhar além disso, que essa pessoa, como qualquer outra, também fica triste e alegre, também ‘tá’ buscando a felicidade como qualquer outro ser humano”.

Ativismo

Alice e Adriana, de braços abertos, entrelaçados, sorriem e usam camiseta azul com o texto Autismo no Coração.
Assim como o autismo, o ativismo também faz parte da vida de mãe e filha.
Foto: Victor Lacerda

A Alice não é ‘meio’ autista. Nem a Adriana é ‘meio’ mãe de autista. O autismo na vida delas é determinante demais. Por isso, a Adriana – que já se via como ativista de outras causas – entendeu que o ativismo não era uma escolha, e sim uma luta diária. Uma luta com algumas conquistas, é verdade, mas ainda com muitos desafios, principalmente porque vivemos em uma sociedade deficiente, que se coloca como barreira e acaba por dificultar ainda mais a vida das pessoas com limitações específicas, as quais chamamos de deficientes.

Para não ser barreira na vida da filha, a Adriana procura abrir caminhos, dar oportunidades, e dialogar. Tudo para que ela possa falar enquanto mãe, mas que a Alice se aproprie do seu lugar de fala enquanto pessoa autista.

O primeiro passo é não esconder da filha que ela faz parte do espectro. Sempre que a Adriana falava para a Alice que ela tinha autismo, a menina achava que era um superpoder. Este ano começou a ter consciência das dificuldades. Conforme ela cresce, mais mãe e filha conversam sobre os medos, desafios e possibilidades.

A Adriana conta com o apoio da família e também com o amparo e troca de experiências compartilhadas entre famílias da AMA Oeste (Associação de Pais e Amigos do Autista de Chapecó e Região).

Entretanto, todas as decisões, especialmente as mais importantes para a vida da Alice, ela precisa tomar sozinha. E todos os desafios que surgirem – cotidianos ou não –, ela sabe que vai ter que encarar de frente. E com amor.

“O autismo pra mim traz muita solidão. E muito vem de ter que decidir tudo sozinha. Todos os dias são difíceis.

O lado bom é que é fácil de ser feliz, porque diante dessas dificuldades, qualquer coisa te alegra. Tudo de positivo que ela fizer, me deixa super realizada.

O autismo é difícil todo dia, mas não é por isso que não tem felicidade. Tem muito amor entre nós”.

Adriana Freitag Migott, mãe da Alice.