Muito mais do que ‘um casal de surdos’

Chapecó/SC

Odnei e Dielen compartilham as alegrias, as dificuldades, os sonhos e o desejo de uma sociedade bilíngue e inclusiva.

De repente, o Odnei começou a passar mal. Ele tinha seis anos de idade e precisou ficar três meses hospitalizado. O diagnóstico era meningite. Apesar do susto e do risco de morrer ou de ficar com alguma deficiência, o menino saiu do hospital recuperado e saudável.

Com o passar dos meses, ele percebeu que estava perdendo, gradativamente, a audição. Entre os 10 e 11 anos de idade a situação se agravou e o garoto ficou praticamente surdo. Odnei morava em uma pequena cidade paranaense. Estudava em escola regular e vivia em uma família oralizada – sem ingressar no universo da linguagem de sinais. Ele usou aparelho auditivo, mas o barulho o perturbava. Fez sessões com fonoaudióloga. Até que mudou para uma escola bilíngue (com Libras).

Apesar de não ouvir, Odnei não conhecia a comunidade surda e não sabia nada de Libras. Já os seus novos colegas, eram fluentes. Passou anos se sentindo um ouvinte no meio dos surdos, até que começou a aprender Libras, aos 18 anos, apenas observando os demais.

Sempre com o auxílio de intérpretes, prestou vestibular e se graduou em História. A vontade era lecionar, mas acabou indo trabalhar na empresa da família, uma fábrica de sorvetes. Infelizmente, a surdez impôs algumas barreiras ao sonho de ser professor de História. Chegou a passar em um concurso para dar aulas em uma cidade da região Oeste de Santa Catarina – no qual se inscreveu como professor de História e como segundo professor de Libras –, mas, para ambas as vagas, o candidato precisava ser ouvinte.

Em 2017, por meio de familiares que residiam em Chapecó, descobriu que, nesta cidade, poderia realizar o sonho de ser professor – ainda não lecionando História, mas ensinando Libras. Já era um começo. Aliás, era um grande recomeço para o rapaz que até então morava com os pais.

“Um surdo sozinho, que não conhecia nada da cidade”, como ele mesmo se descreve, fez mudança para Chapecó e procurou suporte na Associação de Surdos local. Foi lá que conheceu a Dielen. Eles se tornaram amigos e a amizade deu origem à paixão, ao amor e a um relacionamento que já dura dois anos e meio.

Dielen tem cabelos longos, castanhos claros. Usa vestido de festa, em tom de verde. Odnei tem barba e veste terno e calças pretas com camisa azul escura e gravata azul clara. Ambos sorriem para a foto.
Dielen e Odnei se conhecerem na Associação de Surdos, ficaram amigos e se tornaram namorados.
Foto: acervo da família

Uma jovem em busca dos sonhos

A Dielen tem 23 anos, trabalha desde os 15 e já vive o seu maior sonho profissional: trabalhar em uma instituição bancária. Mesmo tendo alcançado o posto tão desejado, ela continua fazendo planos: quer ser gerente, comprar uma casa e continuar estudando – formada em Contabilidade, ela pretende fazer um mestrado ou pós graduação. Estes são apenas alguns dos desejos de uma jovem que vem ao longo da vida precisando se adaptar e, ao mesmo tempo, buscando que os outros se adaptem a ela: é uma grande incentivadora das pessoas a sua volta para que aprendam Libras.

Aos três anos de idade, Dielen, que era ouvinte, ficou doente. A mãe dela conta que foi receitada uma medicação muito forte e, poucos meses depois de tomar o remédio, ela simplesmente parou de ouvir. A família atribui o corrido ao medicamento, mas o fato é que, independentemente da causa, o susto foi grande – e as mudanças também!

Um dia, a menina estava sentada, brincando, e a mãe chamou por ela insistentemente. Ela simplesmente seguiu brincando sem ouvir uma palavra. Um choque para toda a família, que residia em Chapecó. Imediatamente a criança foi levada para uma escola bilíngue, com aulas segmentadas para alunos surdos. Aos três anos, ela começou a aprender Libras. Os pais também fizeram curso para se comunicarem com a filha por meio dos sinais. A irmã de Dielen, nove anos mais velha, hoje é intérprete de Libras. A família toda começou a aprender junta a língua brasileira de sinais e estimular o desenvolvimento da menina a partir dessa forma de comunicação.

Ela permaneceu na mesma escola até o 5º Ano. Depois disso, passou a frequentar a chamada ‘escola inclusiva’, ou seja, estaria numa turma com alunos ouvintes e teria uma intérprete de Libras para auxiliar. Adaptar-se a esse novo universo foi um grande desafio.

Dielen sentia falta de mais recursos visuais em sala e também da conversa com colegas fluentes em Libras. Mesmo encontrando algumas barreiras, não desistiu de estudar e prestou vestibular para Ciências Contábeis, mesma graduação cursada pela irmã, anos antes. Foi aprovada e adentrou no novo desafio: a rotina universitária.

“Na faculdade, o contato era muito difícil. Fui a primeira surda a cursar Ciências Contábeis nessa universidade e sentia que era um desafio para todos, a começar pelos colegas que pareciam estar sempre duvidando da minha capacidade.

Aos poucos fui ganhando o respeito. Porém, tive que provar que era capaz e isso era algo muito cansativo, pois exigia um grande esforço. Quando tinha trabalho para entregar, por exemplo, três dias antes do prazo o meu já estava pronto. Era uma dedicação extra para ganhar o respeito dos demais.

Eu também precisava me preparar melhor para as aulas, necessitava de um tempo a mais para acompanhar o conteúdo – era um olho no quadro, um no professor, e ainda tinha que acompanhar a intérprete e a calculadora, quase uma maratona.

Quando tinha trabalho para apresentar, além de me preparar, eu precisava preparar a intérprete para reduzir o risco de uma interpretação errada no final.

Além disso, eu precisava não internalizar tudo isso (o preconceito, o julgamento, a descrença dos demais, as dificuldades em geral), para me manter focada. No fim das contas, eu é que precisei me adaptar.”   

Dielen Talia Vizzotto, contadora.

A diferença na forma de se comunicar não impediu a Dielen de buscar espaço no mercado de trabalho. Aos 15 anos, teve o primeiro emprego, em um supermercado, no cargo de auxiliar financeiro. No local, se comunicava com os colegas através da escrita e por gestos. Quando tinha alguma palestra na empresa, havia intérprete de Libras.

Depois que saiu do primeiro emprego, precisou bater em muitas portas. Esteve em quase 20 empresas a procura de trabalho. Encontrou vaga em outro mercado, como empacotadora. Não era o trabalho que ela almejava, tinha outros objetivos, mas precisava do dinheiro. Ficou no local poucos meses, pois queria mesmo era começar a trilhar o caminho para alcançar o sonho de trabalhar em uma instituição bancária. Após muitas tentativas, conseguiu uma oportunidade para atuar no setor contábil de uma empresa, na qual permaneceu por sete meses.

Na trajetória em busca do sonho, várias portas se fecharam pela falta da oralidade. Até que, há três anos, Dielen encontrou, em uma instituição do sistema financeiro cooperativo, a oportunidade para a qual vinha se preparando e, nas palavras dela: “realizou o objetivo de vida”.

Nova rotina

Este ano (2020), Odnei e Dielen resolveram morar juntos, o que veio a calhar, especialmente durante a pandemia de Covid-19, iniciada em março. Eles vêm fazendo companhia um ao outro em meio ao distanciamento social.

Dielen e Odnei sorriem para a foto/selfie. Ambos usam óculos com armação preta.
Este ano o casal decidiu morar junto.
Foto: acervo da família

Com a pandemia, Odnei está em home office e enfrenta duas dificuldades: a saudade de trabalhar em sala de aula e a barreira das máscaras que cobrem a boca e impedem a leitura labial – importante método utilizado pelos surdos para compreensão da linguagem dos ouvintes. Ele reconhece a importância do acessório, mas gostaria que os atendentes de estabelecimentos como farmácias, por exemplo, usassem máscaras com transparência revelando a expressão da boca.

O rapaz de 30 anos ainda sonha com a oportunidade de ensinar a disciplina de História no ensino regular – para isso acontecer, seria necessário um intérprete em sala –, mas reconhece a beleza do caminho que trilhou e tudo o que já conquistou: comemora estar cursando a segunda graduação, à distância, de Letras/Libras e se alegra com o relacionamento tranquilo e amoroso construído com a Dielen.

A Dielen também celebra o amor e as realizações. Hoje, ocupa o cargo de assistente de controladoria, mas não quer parar por aí e já se prepara com foco em outras funções no trabalho.

O desejo de crescer profissionalmente anda junto com o orgulho por ter ingressado na empresa e protagonizado toda uma organização para que ela ocupasse a vaga. Desde que chegou ao local de trabalho começou a ensinar Libras para os colegas. Ela sempre incentiva todos os amigos e conhecidos a fazerem cursos e aprenderem a linguagem de sinais.

Dielen demonstra, na prática, que a verdadeira inclusão passa pela conscientização sobre a importância de um olhar para a diversidade e de uma comunicação plural. Tanto ela quanto Odnei nos lembram que pequenos detalhes podem fazer uma grande diferença quando o assunto é inclusão.

É difícil saber se estamos longe ou perto de incluir aqueles que se comunicam de forma diferente de nós, mas uma coisa é certa, a receita não é tão difícil quanto parece. Ela reúne ingredientes simples como boa vontade, atenção e adequação.