Laudo não é sentença: uma jornada pela qualidade de vida

Laudo não é sentença: uma jornada pela qualidade de vida

Maravilha/SC

O longo caminho de estudos, terapias e dedicação percorrido por uma família que não desiste de investir nos potenciais e de celebrar a vida.

A neurologista disse que ele não tinha autismo, e sim, que era mal educado e sem limites. Entretanto, foi justamente quando ela falou a palavra ‘autismo’ que a Andrea se deu conta de que podia ser exatamente isso o que o João Pedro tinha.

Carregando consigo uma forte intuição materna, foi em busca de uma segunda opinião. Após a análise de outras duas profissionais – uma neurologista pediátrica e uma neuropsicóloga – recebeu o diagnóstico de autismo e entrou em negação.

Para aplacar um misto de sentimentos, mergulhou no mundo das terapias. Três vezes por semana, saía de Maravilha, cidade em que reside, e percorria mais de 150 quilômetros – entre ida e volta – para levar o filho aos atendimentos em Chapecó. O João Pedro tinha três anos de idade, comportamento relacionado ao autismo severo, e uma agenda cheia.

Muito antes do diagnóstico, o menino já dava sinais que a mãe não sabia interpretar, mas que hoje reconhece como sendo o autismo presente desde bebê. Aliás, ela acredita que uma sucessão de acontecimentos, ainda no ventre, indicava o gatilho genético para o autismo. Aos cinco meses de gestação, Andrea teve uma ameaça de aborto e precisou ficar hospitalizada. Com diagnóstico de placenta prévia (uma complicação da gravidez causada pelo posicionamento da placenta), teve que ficar em repouso para evitar que o bebê, tão planejado e desejado por ela e pelo marido Márcio, nascesse antes da hora.

Entre a 37ª e a 38ª semana de gestação, em um dia de agosto que o João Pedro escolheu para ser o seu, a professora de Inglês e Espanhol segurava nos braços o filho, pela primeira vez, logo após o parto.

Andrea havia se preparado para a maternidade lendo livros e revistas. O que ela não sabia era que os artigos só preparam as mães para lidarem com ‘crianças típicas’ – nomenclatura na qual ela descobriria, mais tarde, que o seu filho não se encaixava.

“Eu cantava, ele chorava”

Foi com essa frase que a Andrea me ilustrou o quanto não somos preparados para a possibilidade de ter um filho não típico. Nosso comportamento é condicionado para atender um bebê sem necessidades especiais – além daquelas que as crianças já costumam trazer consigo. Porém, ainda bebê, o João Pedro reagia aos estímulos de uma forma diferente das outras crianças. Ele era muito ativo e não brincava. Era tão intenso e agitado a ponto de chorar no fim do dia de tanto cansaço. Tinha rotinas para tudo e dificuldade no contato visual. A avó, pedagoga, ficava com ele e percebia que havia algo estranho, mas não falava para não assustar os pais do menino. O desenvolvimento social e de linguagem tinha muitos déficits, no entanto, o desenvolvimento neuromotor sempre foi compatível com o das crianças típicas.

Uma internação hospitalar, aos dois anos de idade, trouxe a perda de habilidades que o menino havia conquistado até então: o imaginário, a abstração e algumas palavrinhas, tudo isso sumiu; não existia mais brincar, nem olhar. Hoje a família sabe que ele passou por uma disfagia (dificuldade de deglutição), o que também prejudicou a fase alimentar: toda a introdução alimentar e outras habilidades relacionadas pareciam simplesmente terem sido apagadas. O João Pedro ficou cerca de dez dias hospitalizado. Os exames detectaram intolerância a lactose – uma questão genética e que perdurará por toda a vida.

Foi o irmão da Andrea, hoje falecido, que era educador físico e chamou a atenção para o fato de o menino não falar. Ele alertou sobre a possibilidade de haver ‘algo errado’. Depois de muita insistência dele e do menino ter regredido após a internação, a família levou o João Pedro para uma consulta com uma fonoaudióloga e a profissional recomendou que procurassem um neurologista.

Andrea com o filho João Pedro. Estão de pé, encostados em um carro (Fusca) amarelo. Eles vestem calça jeans e camiseta de cor escura. A mãe está olhando para o filho e com a mão no rosto dele. O garoto segura um celular.
Mãe e filho caminham juntos nessa jornada de amor, desafios e aprendizado.
Foto: acervo da família

Quando o diagnóstico de autismo do João Pedro se confirmou, veio para a Andrea o pesar, a dor e o desespero, aliados a muitas ideias equivocadas referentes ao Transtorno do Espectro Autista (TEA). No pacote, veio também a busca incessante por tudo o que pudesse estimular o desenvolvimento dele; veio a decisão de não ter outro filho; e até mesmo a descoberta do autismo leve do marido. Vieram inúmeras terapias – inclusive para os pais, um passo importante nessa caminhada de se compreender e viver melhor.

Foram muitos os acompanhantes terapêuticos – que auxiliam a família até hoje e que ao longo dos anos a Andrea se especializou para treinar. Aliás, dá para se dizer que veio até mesmo uma nova mãe, uma nova mulher, que acrescentou ao currículo mais de 800 horas de cursos livres relacionados ao autismo e aos métodos para estimular e, principalmente, melhorar a qualidade de vida dos autistas. O estudo surgiu da necessidade e da falta da ciência aplicada na região.

A partir de um curso em crises agressivas, a Andrea percebeu que as crises praticamente zeraram e viu que podia usar a ciência para ele ter um desenvolvimento e uma vida melhores.

Ou seja, com tudo isso, surgiu até mesmo uma nova profissão para a mãe do João Pedro, que hoje é psicopedagoga com prática embasada em ABA, especialista em autismo.

JP fez nascer uma mãe ativista e que entendeu que laudo não é sentença e que, acima de tudo, todos nós devemos ser celebrados. Sempre.

A partir do momento em que a família se muniu de conhecimentos, aceitou a situação e se fortaleceu, até mesmo o comportamento do João começou a mudar. E todos entenderam a importância de respeitar a personalidade e individualidade do garoto.

O ‘x’ da questão é que ele tem autismo e tá tudo bem.

Isso independe da aceitação do outro, afinal eu também tenho um monte de coisas e não tem ninguém aí querendo me fazer perfeita.

Eu tinha uma escolha e falei: ‘eu vou viver feliz’.

Eu nunca vou parar de estimular; onde ele vai chegar vai depender dele. Nada é feito para corrigir o meu filho, mas para melhorar a qualidade de vida dele, e isso vem acontecendo.

Hoje, a minha maior alegria é ele saber o que ele tem e quem ele é.

Olha tudo o que ele moveu; ele moveu o meu ativismo. Claro que, para isso, tive que me reinventar e me sobrepor a todos os preconceitos que existem com as mães de pessoas com deficiência e que estudam e se especializam no assunto.

Tivemos momentos muito ruins em todos os sentidos, mas pra mim o João Pedro é tudo e pro Márcio não existe mais nada. Ele mudou muito a nossa vida. Tive muitas fases enquanto ser humano também. A gente vai se tornando cada vez mais humilde, até porque diante de uma deficiência muitas vezes você se sente impotente.

O melhor de tudo isso é reconhecer a pequenez da gente, celebrar a vida e acreditar sempre. O João me ensinou que as coisas são possíveis e que não devo desistir fácil de absolutamente nada, principalmente dele.

Andrea Rigotti Vendruscolo, mãe do João Pedro.

Um caminho longo, tortuoso e custoso, com muitos momentos difíceis, com barreiras como a falta de conhecimento das pessoas, o preconceito, as comparações e até mesmo a exclusão velada, escondida numa aparente e hipócrita inclusão. Tudo isso precisou ser enfrentado. E muitos bons resultados surgiram. Entre as conquistas alcançadas está a transição do autismo severo para o moderado e melhorias na qualidade de vida e independência, além de evoluções no tão sonhado processo de alfabetização, respeitando as necessidades e potenciais de um garoto autista e não oralizado.

Aos 14 anos, João Pedro cursa o Sétimo Ano do Ensino Fundamental – por sua conta e risco, a família ‘segurou’ ele no Pré II e no Primeiro Ano, ainda que contrariando a todos, por acreditar que ele não tinha os pré-requisitos para a alfabetização e também por crer que a inclusão não pode ser vexatória e precisa respeitar individualidades, sempre levando em conta o bem estar da criança e não simplesmente o que os outros gostariam que fosse feito.

João Pedro é moreno claro, tem olhos e cabelos castanhos, está sentado em uma poltrona colorida, usa camiseta preta e calça jeans. Está olhando para o lado, com expressão tranquila.
João Pedro tem 14 anos, cursa o Sétimo Ano e avança no processo de alfabetização.
Foto: acervo da família

Questões de socialização estão entre os desafios da rotina do João nos quais ele precisa de mais suporte. O garoto não gosta de música, de lugares barulhentos, nem de animais com pelos. Atualmente, tem vivenciado uma rotina de reeducação alimentar e exercícios. Gosta de shopping, praia, eletrônicos, máquinas, animais aquáticos, de comer e de viajar. Aliás, é o ‘parceirão’ da Andrea quando o assunto é viajar. E, sem dúvida, é a grande motivação para todos os dias dela, com ou sem viagens no roteiro.