Ele não era um ‘aluno-problema’

Kelly e Pietro sorriem para a foto. Ele usa uma camisa de gola polo preta e ela está usando toga azul e capelo preto.

Kelly e Pietro na formatura da Kelly em Marketing Digital. Foto: acervo da família

São José do Cedro/SC

O diagnóstico de TOD e Altas Habilidades se tornou o grande aliado da mãe do menino rotulado como ‘terrível’ na escola.

Uma gravidez planejada trouxe ao mundo, em 2011, de parto normal, o Pietro, nascido em Balneário Camboriú. Um menino pequeno para a idade gestacional: 2,5 quilos em 37 semanas de gestação; mas que se fortaleceu mamando no peito por dois anos e sete meses.

A Kelly, jornalista nascida em Dionísio Cerqueira (extremo oeste de Santa Catarina) e que estava a quase 700 quilômetros de distância dos familiares, sentia falta de casa. Então, em 2013, deixou Balneário para trás. Deixou pra trás também o relacionamento de quatro anos e, sozinha, retornou ao Oeste Catarinense – mais precisamente para São José do Cedro, onde mora até hoje – para criar o menino perto dos avós dele.

O garoto, que deu os primeiros passos antes de completar 10 meses de vida e começou a falar com um aninho, gostava de palavras difíceis e às vezes agia como uma criança mimada. Pietro nunca achou gatos e cachorros fofos, mas sempre gostou de répteis e insetos. O menino de gostos peculiares, esperto, doce e bastante apegado à mãe – não ficava nem com a avó –, aos dois anos e meio começou a frequentar a creche. Um novo capítulo, tão cheio de confrontos quanto de descobertas.

Pouco acolhimento e muito julgamento

Embora estivesse na fase da chamada ‘socialização’, o Pietro não convivia bem com as outras crianças. Ele brincava sozinho e não demonstrava interesse pelo que as professoras falavam. Parecia ‘diferente’ dos outros.

Por conta da idade, o menino mudou de escola (transição da creche para a Educação Infantil), mas os problemas continuaram. A Kelly começou a ser chamada o tempo todo na instituição para falar com diretores e professoras. O garoto simplesmente não obedecia às regras, tinha argumento para tudo e passou a ser rotulado como ‘terrível’. Terrível. Um adjetivo para a criança de apenas quatro anos que, em casa, segundo a mãe, era um ‘anjo’: carinhoso, sorridente, obediente, respeitoso, brincalhão, sociável e que se concentrava facilmente em atividades das quais gostava (como jogos, blocos de montar, desenhos e filmes).

O fato de o Pietro ser retratado pela escola como alguém muito diferente da criança que a mãe conhecia, fez a Kelly pedir para filmarem o garoto no ambiente escolar. Ela se surpreendeu com o que viu nas gravações: ele realmente não cumpria as regras e não parava quieto, parecia hiperativo.

Mesmo depois de muitas conversas na escola, a situação não melhorava. O menino continuava com as mesmas atitudes e, o pior, as professoras e diretores, também.

“A escola ficava apontando pra ele, rotulando. Diziam que o que ele tinha era falta de limites. Só o que eu ouvia é que tudo o que ele fazia era ruim, não tinha nada de bom, nunca. Eu já estava cansada e precisava de respostas”.

Kelly Figueiró, mãe do Pietro.

Munida de relatórios escolares que indicavam até mesmo a possibilidade de psicopatia, Kelly começou a jornada em busca dessas respostas. Precisou ouvir do primeiro neurologista pediátrico que o menino “não tinha nada além de ser um aluno-problema”. O médico chegou a dizer que se o menino tivesse algo, ela tinha também, pois eles eram iguais, fazendo a mãe ficar ainda mais perdida – e culpada – nessa busca.

Conhecimento que liberta

Kelly e Pietro sorriem para a foto. Usam roupas coloridas, de verão. Kelly tem longos cabelos pretos e encaracolados e olhos castanhos. Pietro tem os olhos azuis e o cabelo castanho claro.
Em meio aos obstáculos, Kelly e Pietro aproveitam os bons momentos em família.
Foto: acervo da família

Apesar do mau começo, ela seguiu procurando informações e estudando por conta própria, até encontrar profissionais que pudessem realmente auxiliar. Foi somente a partir de uma avaliação neuropsicológica, quando o Pietro já tinha seis anos, que as efetivas respostas começaram a aparecer: um QI (quociente de inteligência) bem acima da média para a idade e comportamento semelhante ao TOD (Transtorno Opositivo Desafiador) acentuado pelo ambiente escolar. Além disso, tanto a neuropsicóloga quanto o novo neurologista pediátrico do menino excluíram a hipótese de TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade).

Após vários testes e cerca de um ano depois dos primeiros resultados, a equipe fechou o diagnóstico do Pietro – com 7 anos de idade e com QI 140 – como sendo uma criança com Altas Habilidades/ Superdotação (AH/SD) e com Transtorno Opositivo Desafiador (TOD).

A partir do diagnóstico, a postura da escola começou a mudar. Pietro não cursou o terceiro ano do ensino fundamental – família e escola chegaram a um acordo e optaram pela aceleração (o Pietro foi para uma turma mais avançada, um direito garantido aos alunos com Altas Habilidades visando respeitar individualidades, peculiaridades e potenciais). O menino, que fez nove anos de idade no mês de março de 2020, frequenta atualmente o quinto ano. Estudar com crianças um pouco mais velhas ajudou o Pietro a fazer amigos e a se adaptar à turma e à rotina escolar.

“O maior desafio é a compreensão das pessoas.

O pior momento de todos foi quando eu fui na escola e disseram que o que ele tinha era falta de limite.

A escola não aceitava as respostas que vinham dos profissionais que atendiam o Pietro, ou seja, a escola estava desalinhada com a família, não falava a mesma língua.

Em compensação, o melhor momento foi quando recebemos o diagnóstico fechado, pois finalmente podíamos pedir a aceleração, o enriquecimento curricular e todo o olhar adequado que ele precisava e merecia”.

Kelly, mãe do Pietro.

Mesmo com os avanços, a mãe conta que o TOD ainda traz muitos prejuízos sociais: ele é o garoto ‘do contra’, não admite perder e quer fazer as suas próprias regras. O uso de medicações – em dose pequena, de testagem – e as terapias cognitivo comportamentais (frequenta a psicóloga semanalmente) também têm sido aliados no progresso da criança quando o assunto é comportamento e socialização. Para Kelly, “remédio é coleira e terapia é adestramento” e, com essa filosofia, pouco a pouco, os avanços aparecem.

O diagnóstico, embora complexo, veio como uma libertação. A partir dele foi possível se libertar das amarras do julgamento antecipado, da culpa desnecessária e do sofrimento que o desconhecimento traz. É mais fácil a caminhada quando sabemos onde estamos pisando.

A minha dificuldade não está no trato com ele, e sim na sociedade, na cobrança dos outros, no julgamento.

Eu não gostaria que ele tivesse que se moldar ao mundo e nem que o mundo se moldasse a ele também, mas que fosse aceito do jeito que é, dentro do que ele é. Falta aceitação e empatia.”

Kelly Figueiró, mãe do Pietro.

Pietro usa uma camisa de gola polo preta e a Kelly veste vestido longo, social, em dourado e azul.
Kelly e Pietro, aproveitando a formatura da Kelly em março de 2020.
Foto: acervo da família

Estruturas

A falta de serviços governamentais adequados também está entre as angústias da Kelly, que precisou – e precisa – pagar tudo do próprio bolso (médicos, diagnósticos, terapias). Ela lamenta a falta de suporte do governo na saúde e na educação e também sente falta de especialistas no assunto na região.

Além disso, muitas vezes é preciso enfrentar um modelo escolar defasado e inflexível, com pouco foco na formação para a vida e nas habilidades socioemocionais; um sistema que, infelizmente, não forma pessoas que cooperam, apenas que concorrem entre si.

Pietro, para além de rótulos, uma criança

Independentemente de diagnósticos e, principalmente, de julgamentos, Pietro é um indivíduo. Todas as dificuldades e os potenciais dele precisam ser levados em consideração pela família, escola e sociedade, respeitando sempre a individualidade dele e, lembrando, que se trata de uma criança, tão singular quanto plural.

Pietro é seletivo para comer. Imita os personagens que gosta. Entende muito de língua portuguesa, mas apresenta dificuldade para escrever (há suspeita de dispraxia), o que torna a escrita mais cansativa do que empolgante. Ele se destaca quando o assunto é matemática. E política. E ciências, história, geografia, planetas, atualidades. Ou seja, estuda de forma atenta e diversificada.

O menino lê bastante. É independente. Faz ovo cozido, torrada e, na maioria das vezes, prefere se fechar no quarto, no próprio mundinho. Não expõe sentimentos e raramente chora. É brincalhão, irônico e apaixonado por fazer rimas. Quer ser cantor de rap. Ou presidente. Talvez engenheiro. Quem sabe, youtuber. Ele é só um menino cheio de ideias. Tem a vida inteira pela frente. E uma mãe que, de todas as coisas do mundo, só deseja que ele seja feliz.

Kelly e Pietro sorriem para a foto. Ele usa uma camisa de gola polo preta e ela está usando toga azul e capelo preto.
Kelly e Pietro na formatura da Kelly em Marketing Digital.
Foto: acervo da família