Cada detalhe num toque de amor

A família está sentada em um gramado, rodeada por árvores. Todos usam camiseta branca e sorriem.

Fernanda, Wagner e os filhos Aurora, Miguel, Helena e Sofia Liz. Foto: acervo da família

Concórdia/SC

Inspirada pela canção ‘Aos olhos do Pai’, Fernanda abriu o coração para receber a filha com síndrome de Down, em meio a uma gravidez não planejada de gêmeos.

Quem diria que em uma saída noturna em meio a uma depressão, a Fernanda iria encontrar o amor. E mais! Quem diria que, anos mais tarde, eles formariam uma bela e grande família, com quatro filhos. Na última gravidez, de gêmeos, teve ainda uma enxurrada de surpresas. A primeira, estar grávida. A segunda, serem dois bebês. A terceira, um dos bebês ser menino – até então o casal tinha duas filhas e estava vindo a terceira, junto com o menino. E a quarta, a gêmea caçula, ter síndrome de Down. Isso sem falar que o parto dos gêmeos foi normal e humanizado. Uma história com muitos capítulos e também com muito amor.

Em 2001, a jovem Fernanda, de 18 anos, natural do interior de Irani, estava na cidade de Concórdia para estudar. Eram tempos difíceis pra ela, que enfrentava uma depressão. Na tentativa de animá-la, as amigas insistiram para sair naquela noite. Foi quando conheceu o Wagner, de 25 anos. Eles casaram em 2010 e no ano seguinte veio a primeira gravidez.

O sonho de ser mãe sempre foi muito vivo na Fernanda, que acreditava ter nascido para a maternidade. Tanto ela quanto o Wagner imaginavam ter uma família grande. A Fernanda sonhava, também, com o parto normal e fez todo o acompanhamento pré-natal em uma clínica especializada em parto humanizado, em Florianópolis (capital catarinense, que fica a aproximadamente 460 quilômetros de distância de Concórdia). O casal se programou para o nascimento da filha acontecer lá.

Perto da data prevista para o nascimento, a Fernanda e o Wagner se preparavam para viajar para Florianópolis quando ela entrou em trabalho de parto. Eles até tentaram antecipar a viagem, mas mesmo assim não deu tempo. Estava na hora do bebê nascer e teria que ser ali mesmo. A Fernanda não queria ir para o hospital, mas não teve jeito.

“No hospital eu fiquei super nervosa, travei. Sofri violência obstétrica. Consegui que fizessem o parto normal, mas com muitas intervenções, e não do jeito natural que eu tinha imaginado. Fiquei traumatizada. A Sofia nasceu toda molinha, sem oxigenação. Felizmente, ela se recuperou rápido”.

Fernanda Sandi Soligo, mãe da Sofia Liz.

A Sofia nasceu em janeiro de 2012. Uma criança doce, tranquila e carinhosa. Três anos depois, o casal resolveu aumentar a família. Na segunda gravidez, o pré-natal também foi feito em Florianópolis, mas a Fernanda passou os nove meses com medo de não conseguir fazer o parto lá.  Só que dessa vez, a história era outra e, em outubro de 2015, um novo capítulo iniciou.

“Eu tinha muito medo de acabar parindo aqui, mas deu tudo certo. O parto foi rápido, levou três horas. Foi um parto humanizado, sem uma única intervenção, respeitando o momento da mulher.

Foi possível perceber que o parto é uma das experiências mais transformadoras da vida da gente”.

Fernanda, mãe da Sofia Liz e da Helena.

A Fernanda e o Wagner sempre diziam que queriam ter três filhos. Só que a Helena chegou e fez o casal mudar de ideia. A bebê chorava muito – um choro de reclamação, de brabeza – e estava sempre agarrada à Fernanda. Hoje, pode ser definida, entre outras características, como uma menina inteligente e de personalidade forte, que impõe os gostos dela e tem dificuldade em se adaptar ao novo.

Provação, lágrimas e aceitação

A Fernanda tinha parado o anticoncepcional para engravidar a primeira vez e nunca mais voltou a tomar. Depois do nascimento da Helena, o casal começou a usar outros métodos contraceptivos e cuidar para evitar uma nova gestação.

A Helena estava com três anos e a Sofia com seis. Era hora de a Fernanda – que é formada em Direito e parou de trabalhar para cuidar das filhas – se preparar para um retorno ao mercado de trabalho.

Foi quando desconfiou que estava grávida novamente e comprou um exame em uma farmácia para tirar a dúvida. Era final de tarde, mas ela nem esperou pra fazer o exame pela manhã – normalmente é recomendado fazer o exame com a primeira urina do dia – estava ansiosa para conferir o resultado e descartar a possibilidade de gravidez. Porém, ocorreu exatamente o contrário. O teste deu positivo.

O que ela tanto temia aconteceu. Fernanda se desesperou com o resultado do exame. Embora acreditando que era o que ‘tinha que ser’, internamente sentia uma grande e inevitável rejeição e passou os primeiros meses da gravidez lidando com esse sentimento, à custa de muitas lágrimas.

Um ano antes de engravidar, ela começou a sentir que seu lado maternal estava diferente, mais aflorado – como se estivesse se preparando para uma nova gravidez –, ainda assim ela tinha outros planos para a vida e objetivos profissionais que não combinavam com um aumento repentino na família.

“No primeiro ultrassom, vimos duas manchinhas na tela e pensamos a mesma coisa, o Wagner e eu: uma das manchinhas deve ser a sombra do bebê. Até que ouvimos: ‘a família vai crescer e vai crescer bem’ e imediatamente entendemos que eram dois.

Depois disso não lembro de mais nada que foi falado durante o exame. Só lembro de sentar no chão do banheiro do consultório e chorar… muito.

Eu tinha um bloqueio com gêmeos, tinha pavor. A minha fé foi colocada a prova”.

A partir dali, por serem gêmeos – uma gravidez com mais risco –, ela soube que não poderia fazer o parto em Florianópolis. Encontrou em Erechim/RS (cerca de 70 km de Concórdia) uma profissional – enfermeira obstétrica e doula – que pudesse fazer o parto do jeito que ela gostaria.

Alguns exames foram feitos em Florianópolis, como a ultrassonografia com transluscência nucal, na décima segunda semana. Nesse exame já foi possível ver que era um menino e uma menina, Miguel e Aurora. Entretanto, antes de liberar os resultados, o médico quis conversar com a Fernanda e o Wagner e explicou que a transluscência da Aurora tinha dado alterada e que poderia significar que a menina tinha síndrome de Down. Foi mais uma surpresa.

A família não buscou nenhum outro exame para confirmar a Trissomia do Cromossomo 21 durante a gravidez, até porque em todos os outros ultrassons, inclusive o morfológico, tanto a Aurora quanto o Miguel estavam muito bem. Durante a gestação, o Wagner chegou a sonhar com a Aurora e, neste sonho, ela tinha síndrome de Down.

Só que para a Fernanda, ainda haviam muitas dúvidas, incertezas e preocupações: uma gravidez não planejada, gêmeos e uma criança que provavelmente teria algumas dificuldades. Era bastante coisa para assimilar. E foi preciso um momento específico – e mágico – para amenizar as preocupações e acalmar o coração.

“Durante a gravidez, em um dia chuvoso, eu ‘tava’ em casa ouvindo música e refletindo. Daí tocou aquela música que fala ‘perfeita aos olhos do pai’ e eu chorei muito.

Pedi perdão à Aurora, conversei bastante com ela e disse que aceitava ela do jeito que viesse.

Ali eu mudei meu conceito de perfeição. A gente é perfeito do jeito que a gente é, com o que a gente tem que aprender”.

Aurora, sentada em um sofá cinza, com blusa branca e calça rosa com desenhos vermelhos. Sorri alegremente.
“Você é linda demais, perfeita aos olhos do pai, alguém igual a você não vi jamais” Foto: acervo da família

Havia risco de parto prematuro e a Fernanda precisou fazer repouso. Quanto mais os bebês aguentassem na barriga, mais longe estariam da prematuridade. Por isso, ela sempre conversava com eles e pedia que esperassem mais um pouquinho para nascer. Até o dia que sentiu que não dava mais para aguentar. A Fernanda ficou muito mal, não conseguia respirar. Era como se, de repente, não houvesse mais espaço. Estava na hora. A bolsa rompeu e a mãe se sentiu muito forte e com certeza de que tudo daria certo. A gravidez havia chegado a 35 semanas e cinco dias.

Foi uma hora de viagem, em trabalho de parto, até chegar a Erechim. Sentia uma contração em cima da outra e gritava, expulsando o som com força para evitar de empurrar e ‘expulsar’ os bebês da barriga. Acompanhada pela doula, foi para o hospital – a profissional não poderia realizar o parto de gêmeos em casa, por questões legais – e quando chegaram na sala de parto, sentiu que precisava empurrar, não aguentava mais.

O médico ainda não tinha chegado, mas o Miguel nem quis saber. Nasceu assim mesmo, amparado pela doula. Quando o menino saiu, a Fernanda achou que ia respirar alguns minutos, mas a Aurora também estava com pressa e já tinha colocado as perninhas para fora – a menina desceu de pé e já chegou mostrando que veio para fazer diferente. Depois que as duas crianças nasceram, o médico chegou.

“Eu estava ali, simplesmente curtindo aquilo. Foi uma experiência que não tem como comparar. A Aurora nasceu na aurora, seis e pouco da manhã. Quando ela nasceu, a sala se inundou de uma energia linda. Ela veio com uma luz muito grande.

Na hora que olhamos para ela vimos que tinha a síndrome. Foi ela que nos contou, que nos deu o diagnóstico.

Eu não sabia como ia ser, mas eles nasceram bem, fortes e estava tudo certo, estávamos prontos para enfrentar o que viesse”.

Fernanda, mãe da Sofia Liz, da Helena, do Miguel e da Aurora

Fernanda segura no colo os filhos recém nascidos.
Nascimento dos gêmeos, Aurora e Miguel, em parto normal humanizado.
Foto: acervo da família

Dificuldades

A amamentação da Aurora foi um desafio. O Miguel mamava de hora em hora e estimulava muito que a Fernanda tivesse leite para os dois, mas a Aurora mamava pouco. A bebê chegou a ter picos de hipoglicemia porque não tinha força para mamar. A Fernanda precisava dar o leite dela na seringa, colher ou copinho, procurando formas para que a filha se alimentasse. Em meio às alternativas, não desistiu da amamentação e seguia colocando a menina no peito. Quando completou 25 dias de vida, a bebê mamou no peito por 40 minutos. Desde então, nunca mais teve dificuldade para mamar.

Aurora nasceu com cardiopatia (estima-se que metade dos bebês com síndrome de Down nasça com algum problema cardíaco). Os chamados ‘buraquinhos’ – clinicamente nomeados como comunicação interventricular (CIV) e comunicação interarterial (CIA) – tendem a ‘fechar’ com o tempo, especialmente a CIA, para a qual existe uma urgência maior que seja resolvida. Caso isso não aconteça, normalmente a criança é encaminhada para cirurgia.

No caso da Aurora, o ‘buraquinho’ não fechou, ao contrário, vem aumentando conforme o coração dela cresce. Recentemente, a pequena apresentou uma insuficiência cardíaca que acabou refletindo na disposição e desenvolvimento dela. Foi preciso iniciar com medicação. Agora, a família aguarda os próximos capítulos que, possivelmente, vão incluir uma cirurgia cardíaca.

Quatro crianças e muito aprendizado

Com pouco mais de um aninho, a Aurora está aprendendo a sentar e embora já se expresse, as primeiras palavrinhas ainda não saíram. A pequena faz sessões com fisioterapeuta e fonoaudióloga desde os primeiros dias de vida, mas tem uma hipotonia acentuada. A família comemora cada conquista.

Ela tem muito estímulo em casa, com três irmãos. A mais velha, Sofia, já fala em cursar fisioterapia “para ajudar crianças como a Aurora”. A Helena se encarrega de dar muito carinho, de bater longos papos com a caçula e contar historinhas. O Miguel, não para quieto um minuto sequer.

A Fernanda percebe que tem dois bebês com a mesma idade, mas ao mesmo tempo em fases diferentes. Também percebe que cada um é único. E incrível.

“As nossas crianças vêm trazer uma mudança muito grande. A Aurora está ensinando muita coisa pra gente. Com certeza eu sou um ser humano muito melhor depois deles.

A maternidade é dormir com a sensação de que falhei e acordar com a certeza de que hoje vou ser melhor. É um eterno tentar, é reconhecer os erros; é aprendizado”.

Fernanda Sandi Soligo.

A família está sentada em um gramado, rodeada por árvores. Todos usam camiseta branca e sorriem.
Fernanda, Wagner e os filhos Aurora, Miguel, Helena e Sofia Liz.
Foto: acervo da família

* “Cada detalhe num toque de amor” é um trecho da música ‘Aos olhos do Pai’, de Ana Paula Valadão.