A cada dor, um recomeço

Xanxerê/SC

Enquanto a vida teima em surpreender com diagnósticos desafiadores, a família do Vicente insiste em prosseguir, ainda mais forte.

O Gustavo mudou muito nos últimos anos. Parou de beber e de fumar. O foco se tornou estar bem para poder cuidar da família. Diversas coisas foram deixadas de lado, como as frequentes viagens de lazer. O que antes era prioridade, agora não é mais. E nada disso deixou o Gustavo infeliz, pelo contrário, ele encontrou outros motivos para sorrir. A família ganhou mais alegria e união; se fortaleceu após a chegada do Vicente.

“Nossa vida mudou muito e tudo valeu a pena. A dificuldade não vem por acaso, vem porque a gente tem condições de superar.

Nós ficamos mais fortes, amadurecemos.

Hoje a gente entende o que é uma família, qual o nosso dever na sociedade e acaba, até mesmo, fazendo mais pelo outro, se dedicando e repassando o que aprendeu”.

Gustavo Euro da Rocha, pai do Vicente.

Gustavo, de camiseta branca, segura o Vicente no colo, vestindo agasalho cinza. Ambos sorriem. Gustavo olha para o Vicente e Vicente olha para a câmera.
Gustavo e Vicente, mudança na rotina com muita alegria
Foto: Wagner Gris/ Aldeia 21

Pai de um jovem de 16 anos, fruto de um relacionamento anterior, o Gustavo está junto com a Marina há 15 anos. Eles sempre quiseram ter filho, mas a Marina ficava insegura e acabava desistindo. Em 2016, aos 35 anos, ela engravidou.

Foi uma gestação tranquila, com acompanhamento médico, mas que só foi descoberta após as 12 semanas, portanto, a ultrassonografia com translucência nucal (exame para medir a quantidade de líquido na região da nuca do feto e que serve para calcular o risco de o bebê apresentar alguma malformação ou síndrome, como a síndrome de Down) foi feita, provavelmente, após o prazo recomendando (que é entre a 11ª e a 14ª semana de gestação). O exame não apontou nenhuma intercorrência. Todos os outros exames seguintes foram realizados e também não apresentaram alteração.

Em 24 de março de 2017, três dias após o Dia Internacional da Síndrome de Down, na sala do parto, a Marina descobriu que o filho tinha características da síndrome e teria que fazer o exame do cariótipo (que analisa a quantidade e a estrutura dos cromossomos em uma célula) para confirmar.

Por ser a semana dedicada à conscientização sobre a síndrome de Down, dias antes a Marina estava assistindo TV e viu o início de uma reportagem abordando o assunto. Ela chegou a desligar a televisão, preocupada: “não, meu filho não vai nascer com síndrome de Down”. Era como se o instinto materno quisesse começar a prepará-la para o que viria.

“Quando recebi a notícia me passou mil coisas pela cabeça, não é legal aquela sensação. Mas, no fundo, a minha preocupação era se eu ia conseguir criar.

Hoje, peço perdão pelas coisas ruins que pensei naquela hora”.

Marina Paulino Martins, mãe do Vicente.

A coleta para o exame de sangue que confirmaria a Trissomia do Cromossomo 21 (síndrome de Down) foi feita ainda no hospital. Enquanto o resultado não vinha, a Marina ainda nutria a esperança de que fosse apenas um mal entendido. A avó materna duvidou até mesmo do resultado do exame e levou quase um ano para acreditar. Às vezes, ainda parece que não acredita. Porém, o exame apenas confirmou o que os médicos suspeitavam e que o Gustavo percebeu desde que viu o filho pela primeira vez.

“Eu vi o Vicente logo após o nascimento e, pelos traços, já desconfiei e fui perguntar pros médicos. Eu aceitei bem, para mim nunca importou, porque não muda nada, não muda o que eu sinto.

Acredito que todo o ser humano tem condições de crescer, de evoluir. Na verdade, eu achei ele o máximo, desde o primeiro dia”.

Gustavo, pai do Vicente.

Só que, pra Marina, o primeiro dia foi muito difícil. E os dias seguintes também. Foram três dias em choque, nem o leite descia. O Gustavo achou que ela ia ter uma depressão pós parto. O pediatra, no hospital, falou que o Vicente não ia mamar. Porém, passado o susto, o leite veio e a Marina amamentou o filho até os oito meses.

Hoje, ela entende que tudo o que sentiu tinha a ver com a falta de conhecimento sobre a síndrome de Down. A verdade é que muitas mães sentem o mesmo, por jamais serem preparadas para uma maternidade atípica, por medo, por preconceito e, principalmente, pela falta da inclusão ao longo das últimas décadas, que nos afastou do convívio com pessoas com deficiência.

Com o resultado do cariótipo, era hora de fazer novos exames – como o exame cardíaco, que não apresentou alterações –, e ingressar na rotina de terapias. Com 45 dias de vida, o Vicente começou a frequentar a Apae de Xanxerê (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais, entidade de atendimento a pessoas com deficiência). Em seu próprio ritmo, o Vicente ia se desenvolvendo e evoluindo, de forma lenta, mas perceptível, e com saúde.

Marina, de vestido preto, segura o Vicente no colo, vestindo camisa e gravata borboleta azuis e calça jeans. Ambos olham para a câmera e sorriem
Marina e Vicente: força e amor pra superar os desafios

Tempos difíceis

Entre o quarto e o quinto mês de vida, o comportamento do bebê começou a mudar. Ele chorava todos os dias e tremia os bracinhos. Eram crises de choro intenso e espasmos nos braços quando mamava. Examinado por um neurologista pediátrico, o Vicente teve uma crise na frente do médico, que desconfiou que fosse algum tipo de convulsão. Porém, os eletroencefalogramas apontavam hipsarritmia, uma indicação para o diagnóstico de síndrome de West, confirmado pelo neurologista na terceira consulta.

“Foi devastador!

Foi mais um sofrimento, porque é uma epilepsia de difícil controle; casos graves podem levar até à morte. E veio justamente quando o Vicente começava a evoluir. Tudo parou, regrediu.

Até acertarmos a medicação, ele não chorava mais, não sorria, não tinha expressão, não pegava nada, não fazia nada”.

Marina, mãe do Vicente.

A partir do diagnóstico, com a medicação fazendo efeito e de volta às terapias, embora os sentimentos do menino ainda não tivessem estabilizado, a rotina começou a normalizar. Na verdade, pareceu que ia normalizar.

Aos oito meses, o Vicente teve uma broncopneumonia e foi parar na UTI. Foram 21 dias de hospitalização, sendo dez na UTI. De positiva, desta época, apenas uma lembrança: o menino que havia desaprendido a sorrir, quando saiu da UTI, sorriu, para alegria, emoção e alívio dos pais. Era como se ele tivesse vivido de novo, renascido. Uma ponta de esperança em meio a tanta turbulência e preocupação.

Entretanto, o problema de saúde que afetou o Vicente era um drama que estava apenas começando. Além dele ter perdido todos os avanços que havia conquistado até então, muitos episódios se sucederam à internação. Um problema na glote foi agravado com a intubação. Ele parou de mamar e começou a ter pneumonias de repetição ao longo dos oito meses seguintes. O bebê precisava usar sonda, mas acabava arrancando o tempo todo.

Nessa fase, foi descoberto um forte refluxo e feita uma cirurgia para corrigi-lo e para a colocação do bóton no estômago para alimentação – uma sonda gástrica, que foi retirada em setembro de 2019. Somente após a cirurgia, o garoto voltou a se desenvolver.

“Os dois piores momentos que vivemos com o Vicente foram o diagnóstico de West e a internação na UTI.

A primeira vez que a gente viu ele intubado não foi fácil. Foi tudo muito rápido: em questão de 24 horas ele ‘tava’ brincando e de repente nem se mexia mais. Dá um ‘baque’, você se desespera, mas tem que levantar e ter força, porque, afinal, é o teu filho.

O que conforta é que em nenhum momento ficamos sozinhos, a família foi fundamental. E quando passou aquilo a gente nem acreditava que tinha vencido mais uma fase.

O que mais desejo agora é que ele possa fazer as terapias e se desenvolver. Daqui pra frente, tudo o que ele conseguir é uma vitória”.

Gustavo, pai do Vicente.

Nova jornada

A síndrome de West estabilizou: os eletros não identificaram mais a hipsarritmia, o que significa que esta síndrome está controlada. A saúde melhorou muito.

A Família também encontrou apoio na Associação pelas pessoas com Trissomia do 21 de Chapecó e região – Aldeia 21, que atua no acolhimento e troca de informações entre famílias de pessoas com síndrome de Down.

Vicente, menino loiro de olhos castanhos, sorri sentado no sofá marrom. Veste camisa e gravata borboleta azuis e calça jeans.
Vicente recuperou o sorriso e apresenta avanços no desenvolvimento
Foto: acervo da família

“É claro que a gente fica preocupado, mas ele está tão bem agora que estamos mais tranquilos. De nossa parte, vamos dar todo o suporte necessário para que ele se desenvolva, porque acreditamos muito nele, acreditamos que ele pode!  Nós amamos o Vicente e a nossa maior vitória é ele estar bem!”

Marina, mãe do Vicente.

Vicente com a mãe e o pai, os três estão sorrindo.
Família reunida para vencer os desafios com muito amor.
Foto: acervo da família