A beleza de viver um dia de cada vez e tentar sorrir em todos eles

A beleza de viver um dia de cada vez e tentar sorrir em todos eles

Fernanda e Caio, de óculos escuros com armação preta e bocas bem abertas, demonstrando felicidade, deitados em uma rede amarela.

Legenda: Fernanda e Caio, doses diárias de alegria. Foto: acervo da família

Chapecó/SC

Prematuridade, UTI, hidrocefalia, paralisia cerebral, gastrostomia, hospitalizações e um câncer de mama foram alguns dos desafios que a Fernanda enfrentou desde o nascimento do Caio: o grande amor e motivo da alegria dela.

O Caio está sempre sorridente e a Fernanda tem um alto astral e uma força que não se encontra em qualquer lugar. Quem vê os dois, faceiros pela rua, não imagina o que já passaram. E quem conhece a história deles fica maravilhado diante das conquistas – grandes ou pequenas – e da trajetória para chegar até elas. Um caminho percorrido com muito amor para superar os desafios e as preocupações.

Fernanda e Caio em festa de carnaval, sentados no chão. Eles se olham com amor e alegria. Fernanda está com o cabelo bem curto e brinco grande (argola). Caio usa fantasia do Super Homem e óculos com armação vermelha.
Sempre juntos, Fernanda e Caio transbordam amor e alto astral.
Foto: acervo da família

A Fernanda estava há 14 anos com o Diogo – oito de namoro e seis de casamento – e eles tentavam engravidar há três. Como o tão sonhado ‘positivo’ não vinha, eles optaram pela estimulação hormonal (medicação para liberar mais de um óvulo pra aumentar a chance de gestação). O tratamento durou seis meses. No sexto e último mês, quando o casal já pensava em migrar para a fertilização, veio, enfim, a notícia tão esperada. Aos 31 anos, finalmente a Fernanda ia realizar o sonho de ser mãe.

O pré-natal transcorria normalmente até o ultrassom morfológico indicar baixo peso e vasoconstrição (processo de contração dos vasos sanguíneos) – o bebê estava mal nutrido, pois o corpo da mãe não irrigava de modo que a alimentação chegasse até ele. Com 22 semanas de gestação, Fernanda tinha um bebê pequeno e lidava com o risco de pré-eclâmpsia. Quando chegou nas 27 semanas, ela internou para fazer uma medicação específica (corticoide), mas ele não crescia e o quadro não melhorava.

Com 28 semanas deu a chamada ‘centralização fetal’: devido à falta de nutrição, o bebê estava priorizando órgãos vitais e a cesárea precisava ser feita em até 48 horas para garantir que ele nasceria com vida. Desesperada com todas as possibilidades e já sabendo que após o nascimento teria que deixar o seu bebê na UTI, Fernanda fez o parto no mesmo dia.

Em meio a uma imensa preocupação e um turbilhão de emoções, a pediatra disse que se o Caio nascesse bem, ela mostraria o pequeno para a Fernanda, senão, levaria imediatamente pro atendimento.

Caio nasceu e a pediatra mostrou o menino para a mãe, o que significava que o quadro não era tão ruim. Um alívio em meio a tanta pressão e oração. O bebê nasceu com 770 gramas e ficou internado na UTI. A Fernanda ia em todos os horários de visita – duas vezes ao dia – não importava como ela estivesse. Estar todos os dias ali, apenas ‘assistindo’ o filho que tanto queria pegar no colo, foi uma das dificuldades que ela precisou aprender a enfrentar.

100 dias de UTI

Na segunda noite de internação, um problema em um equipamento colocou a vida do bebê em risco. A pediatra precisou passar a madrugada bombeando oxigênio manualmente pois o Caio estava com sinais vitais baixíssimos. Entre os sentimentos de desespero e revolta, se sobressaiu o alívio pelo Caio ter ‘dado conta’ e sobrevivido a mais essa provação. Entretanto, ainda havia muito pela frente.

No sétimo dia na UTI, o Caio teve a primeira infecção. No nono dia, ele ficou muito quieto e começou a ser investigado o risco de uma hemorragia intracraniana. Com 45 dias de vida, o bebê passou por uma bateria de exames. Ele ganhou peso, estava com 1,5 kg. Porém, os exames detectaram o perímetro encefálico maior (hidrocefalia) – a explicação para isso ter ocorrido é que durante a infecção é preciso aumentar o oxigênio e isso pode fazer com que se rompam vasos e surjam mini hemorragias que podem ocasionar a hidrocefalia.

Àquela altura, a Fernanda sabia que estava lidando com uma lesão e que o filho dela seria uma criança com necessidade de estímulos, mas não se apavorou, pois já acompanhava de perto a rotina de estímulos e as evoluções da sobrinha Dora, que tem síndrome de Down.

Foi preciso entrar com medicação para uma inflamação cerebral. Mas parecia que tudo estava sob controle, até a Fernanda entender que a tal inflamação cerebral era meningite. Ao ouvir a palavra meningite, a Fernanda atingiu o auge do desespero e acreditou que perderia o filho naquele momento. Porém, a pediatra sentenciou exatamente o contrário: “morrer ele não vai, se aguentou tudo até então, agora não vamos perder ele”.

Os passos seguintes foram muitos: medicação, punções para a hidrocefalia não pressionar demais o cérebro, cirurgias relacionadas a hidrocefalia (drenar e trocar a derivação) e uma cirurgia a laser nos olhos – que não funcionou e o bebê precisou de uma injeção específica nos olhos para não perder a visão. Tudo para garantir a vida e, mais do que isso, qualidade de vida para o pequeno, que ainda não conhecia o mundo fora do hospital.

Foram quase três meses olhando para o filho, tocando nele com medo de infectá-lo, mas sempre conversando e cantando – a Fernanda chegou a compor uma música para o Caio –, até que aos 89 dias de vida, o bebê pode sentir o colo da mãe pela primeira vez. Era um sinal de bons e novos tempos que se avizinhavam.

Uma longa ‘estrada de chão’

No 100º dia, o Caio deixou a UTI e trocou de hospital. Era só uma questão de tempo para conseguir fazer o bebê mamar e tirar a sonda para poder ir pra casa. No novo hospital, Fernanda reforçou os laços afetivos com muito colo e carinho, ao mesmo tempo em que tentava com muita esperança fazer o filho se alimentar pela boca, até a fonoaudióloga perceber que o bebê não deglutia, nem na mamadeira e nem no peito. O jeito era ir pra casa com a sonda, uma situação que nem passava pela cabeça da Fernanda.

O Caio foi para casa. Com sonda, sem mamar, com lesão neurológica e no pós-cirúrgico de vários procedimentos. Foi uma fase intensa pra família: curativos, choro, vômito, sessões de fisioterapia; um hospital dentro de casa. Em poucos dias, Fernanda desistiu da tentativa de amamentar e passou a se dedicar exclusivamente às outras necessidades do filho. Foi aí que percebeu que a cabeça do menino crescia muito – chegou a crescer um centímetro a cada dois dias.

Depois de 23 dias em casa, foi preciso voltar ao hospital para uma nova cirurgia e também para ressonância e sucessivas trocas de sonda. Eles passavam mais tempo no hospital do que em casa.

Uma das principais certezas era a sequela da deglutição, mas a Fernanda não estava disposta a desistir. A recomendação era a gastrostomia, da qual ela tinha muito medo, mas tinha um prazo: dois meses para decidir fazer ou não. Foram 60 dias tentando de tudo para que o garoto se alimentasse – em vão. Em meio a novos procedimentos cirúrgicos, nenhum avanço na deglutição, vômitos e até mesmo a perda de peso no processo, a família decidiu migrar para a gastrostomia (cirurgia em que é colocado um bóton no estômago e a pessoa recebe toda a alimentação por ali). Com 10 meses de vida o Caio foi submetido à cirurgia, começou a melhorar do refluxo e a evoluir com o peso.

Antes disso, quando o Caio tinha seis meses, a família recebeu o diagnóstico de Paralisia Cerebral do bebê. Na hora, a mãe criou a imagem de todo um quadro de comprometimento, ficou muito assustada, não acreditava. Só depois acabou entendendo que, na verdade, Paralisia Cerebral era apenas o nome de tudo aquilo que eles já estavam vivenciando.

Com pouco mais de um aninho de vida, o Caio passou a usar óculos. Nessa mesma época ele fez fisioterapia fora do país. A família ingressou em uma maratona de terapias, exercícios e estímulos. E os bons resultados sempre apareciam.

Com dois anos e meio, o menino começou a frequentar a escola e a evolução foi ainda mais surpreendente. Fernanda passou a comemorar cada conquista. Passou até a ser grata pela gastrostomia que no começo ela tanto temia – percebeu que era mais cômodo, que garantia que o filho estivesse nutrido e alimentado e que se tornava mais fácil até mesmo para suplementar. Hoje usa o bóton tranquilamente na rua e em locais públicos como restaurantes, ele deixou de ser um problema e passou a fazer parte da rotina.

Até o ano passado, a família incentivava o Caio a ‘brincar’ com a comida, pois dessa forma acabava experimentando e até mesmo se alimentando um pouco, mas depois de duas grandes infecções respiratórias, desconfiaram que ele poderia estar aspirando a comida e abandonaram – ao menos por um tempo – esse incentivo. A última coisa que a Fernanda quer é correr o risco de voltar para o hospital.

“Pôr o pé no hospital é sempre o meu pesadelo, seja por uma infecção ou cirurgia. O calo é tão grande, que rezo pra não precisar entrar lá. É um sofrimento terrível, porque quando o Caio ‘tá’ mal, eu ‘tô’ mal.

No hospital tu nunca sabe o que vai acontecer. A gente sempre falava, no período de UTI, que era uma ‘estrada de chão’: vai ter um buraco ali na frente, mas tu não sabe onde vai encontrar.

O mais difícil de lidar era com o medo da perda; um dia era mais ou menos, o outro era terrível.

No sétimo dia depois do parto eu me vi em casa, sem filho, sem barriga, sozinha… e minha terapia foi começar a tirar leite. Tirava dia e noite. Era sempre a mesma coisa: rezar e tirar leite, era meu mantra, minha meditação. Até que, pelos 45 dias de internação, eu comecei a ir à UTI em quatro horários e tirar o leite fresco para darem pra ele, pois tem muito mais nutrientes do que o congelado. Foi aí que comecei a me relacionar mais com as outras mães. Nasceram quatro bebês pesando cerca de um quilo, todos no mesmo dia e todas as mães na mesma angustia. Íamos tirar o leite juntas e conversávamos muito e criamos um vínculo lindo, de amizade. Depois do período de UTI criamos um grupo e seguimos em contato por dois anos, acompanhando o crescimento e desenvolvimento de cada um, mas a minha situação era bem diferente, só eu tinha um quadro estacionado de lesão cerebral, e acabei me afastando”.

 Fernanda Moschetta, mãe do Caio.

O comprometimento que o Caio tem é global, afeta os quatro membros – quadriplegia –, porém as pernas têm a perda mais agravada. Ele já chegou a dar alguns passos com apoio, mas conforme cresce e ganha peso não dá conta de segurar/ equilibrar o próprio corpo. Uma das maiores dificuldades é o controle do tronco , que tem hipotonia (diminuição do tônus muscular e da força, o que causa moleza e flacidez), enquanto todo o resto apresenta hipertonia (tensão muscular exagerada ou permanente do músculo em repouso). Na parte auditiva, ele não tem perda, mas tem atraso para o som de um dos ouvidos comunicar o cérebro. Na fala, repete sílabas das palavras ensinadas.

Caio, sozinho, sentado à mesa de um restaurante. Usa blusa azul e óculos de grau com armação vermelha. É loiro, de olhos azuis e sorri suavemente.
Caio participa de todos os momentos e passeios em família.
Foto: acervo da família

O menino, que está com sete anos de idade, sempre foi uma criança tranquila e alegre, mas nos últimos dois anos, começaram a aparecer os desafios comportamentais, coincidentemente numa fase em que muita coisa estava acontecendo na família.

Um drama com começo, meio e fim

Fernanda nutria o sonho de ser mãe novamente. Quando o Caio tinha quatro anos, ela e o Diogo tentaram uma nova gravidez por meio da estimulação hormonal, mas logo nos primeiros meses a Fernanda percebeu que não tinha mais estrutura psicológica para dar esse passo e desistiu; resolveu priorizar o Caio, em todos os sentidos.

Logo depois, em uma bateria de exames, apareceram na região da mama seis mini nódulos que a médica disse serem benignos, de acordo com o laudo, mas a Fernanda ficou preocupada e passou a palpar e prestar mais atenção. Cerca de seis meses depois ela encontrou um nódulo novo e fez novos exames. O novo nódulo era benigno, mas os anteriores, estes sim, indicavam câncer de mama e haviam sido mal diagnosticados meses antes.

Desde que recebeu a notícia, a preocupação da Fernanda era organizar a vida do Caio. Ela sabia que o protocolo era cirurgia, quimioterapia e radioterapia e que teria começo, meio e fim. Estava tranquila e determinada. Teve contato de perto com a experiência de um câncer com o marido, Diogo, que aos 24 anos teve um linfoma e em seis meses estava recuperado. Além disso, Fernanda tinha outros motivos para estar tão confiante:

“Eu não tinha medo da morte, até porque não me via no direito de deixar o Caio.

Eu só agradecia: ‘amém’ que era em mim e que eu é quem ia passar por isso e não ele, porque quando é com o filho a gente desmonta”.

A cirurgia foi feita em Curitiba, onde a Fernanda precisou ficar 15 dias. Além da operação, foram quatro quimios profiláticas e não precisou de rádio. Todo o tratamento foi feito lá. Foram 120 dias sem poder pegar o Caio no colo. Foi preciso aprender a delegar. Ela perdeu os cabelos, passou mal, teve que aceitar ficar em casa e cuidar mais de si mesma. Depois disso, entrou em menopausa precoce (medicamentosa) para não alimentar outros tumores hormonais – ela acredita que a estimulação hormonal para engravidar tenha acelerado um câncer que provavelmente iria surgir somente na menopausa. Agora, uma nova gravidez está fora de cogitação, mas ela não descarta falar sobre adoção. Assunto pro futuro.

Vivendo o agora

Caio usa óculos com armação vermelha e sorri muito! Ele está recebendo beijos do pai Diogo e da mãe Fernanda
Bons momentos e muito amor em família.
Foto: acervo da família

Vamos então deixar o futuro no lugar dele, afinal, como a própria Fernanda diz, “é entender o hoje, curtir o hoje, comemorar o que aconteceu hoje; amanhã é sempre diferente de ontem”. E hoje, existem pelo menos duas grandes conquistas a serem celebradas – além da vida, é claro. Uma delas foi o sonho de construir uma casa totalmente adaptada para o Caio, que finalmente se concretizou (na semana da nossa entrevista a família tinha acabado de se mudar). É a realização do sonho da acessibilidade, um espaço onde tudo foi construído pensando no Caio e em facilitar a vida dele.

Outro sonho cuja realização anda batendo na porta é o da alfabetização. De uma criança na qual a mãe teve dúvidas até mesmo se conseguiria enxergar, Caio passou a um menino que reconhece visualmente as letras, sílabas e palavras e faz a Fernanda acreditar na evolução para uma alfabetização real.

“Eu larguei o trabalho para me dedicar a ele, virei mestre PHD em Caio, sei tudo dele, só pelo olhar. Então, quando percebo ele reconhecendo as sílabas ele fica eufórico porque eu entendi que ele sabe, que ele aprendeu.

Em termos de ganhos, eu espero que leia, escreva, que com tecnologias ele consiga executar funções.

Ele saber pilotar a própria cadeira de rodas, seria um paraíso para mim. Sabemos que isso pode acontecer, como já aconteceu muita evolução. A expectativa de vida dele, por exemplo, saiu de nove para 35 anos pelo fato dele ficar de pé, porque a musculatura dá apoio e acaba melhorando tudo.

Por isso insistimos nas terapias e nos estímulos, até porque o Caio é estímulo-dependente: quanto mais terapia, mais ele evolui; se para, ele regride. Ele não brinca sozinho, nunca. Se tu não der o estímulo ele vai passar o dia no ‘assistir’ e não no ‘executar’, então eu foco em dar possibilidades.

Estar com ele, ter tempo para ele, proporcionar felicidade para ele – como em uma viagem ou passeio, que ele adora – isso me deixa muito bem. O Caio sempre foi muito alegre, então o que me deixa bem é ele”.

Fernanda Moschetta, mãe do Caio.

Viver o momento é uma escolha diária. Aliás, é uma das escolhas diárias. O tempo todo a família precisa tomar decisões, priorizar, escolher caminhos. Não é tão diferente da rotina de qualquer outra família, em que cada passo tem a chance de mudar o futuro.

Muita decisão já foi tomada e tem muito mais ainda pela frente. O Caio está crescendo, a família segue aprendendo, estudando, acreditando, amando e fazendo escolhas. Mas a mais importante eles já fizeram. Quem vê a Fernanda e o Caio pela rua, não tem dúvidas de que eles escolheram ser felizes.

Fernanda e Caio, de óculos escuros com armação preta e bocas bem abertas, demonstrando felicidade, deitados em uma rede amarela.
Fernanda e Caio, doses diárias de alegria.
Foto: acervo da família