Por qual ângulo você analisa uma obra de arte?

Por qual ângulo você analisa uma obra de arte?

Ao buscarmos estudar a história da Psiquiatria e da Neurologia, desde a antiguidade, encontraremos vários momentos divergentes e de certo modo impactantes. Doenças mentais e neurológicas não eram ainda compreendidas e acabavam muitas vezes interpretadas sob o olhar do misticismo e das crenças. Um exemplo foi a Epilepsia, em que se acreditava que a pessoa era tomada por ‘espíritos malignos’. Assim, eram utilizadas técnicas, nem sempre científicas, para ‘amenizar’ sintomas, comportamentos e buscar possíveis curas a doenças e transtornos existentes desde o início dos tempos e que hoje recebem nomes e tratamentos adequados.

Um exemplo dessas técnicas era a Trepanação (perfuração do crânio). Ela era muito utilizada desde antes da idade média. Acreditava-se que, com ela, os demônios e espíritos malignos iriam sair do corpo – mesmo que, muitas vezes, causando a morte – e ‘aliviariam a alma’. Ainda nem se desconfiava que eram alterações neurológicas importantes. Com o passar do tempo, a técnica foi aprimorada e hoje é utilizada de forma adequada, como por exemplo para se criar uma abertura por onde é possível drenar um hematoma intracraniano ou inserir um cateter cerebral.

Muitas situações semelhantes a esta aconteceram ao longo da história humana. Algumas evoluíram e hoje trazem grandes contribuições, outras – felizmente – foram extintas. Todos esses processos geraram estudos, pesquisas, debates e ações que atualmente nos possibilitam entender e continuar a busca pelo entendimento do universo cerebral e sua complexidade.

Complexidade desde as primeiras células

Essa complexidade do sistema nervoso inicia desde o momento da fecundação. É nas divisões celulares que se desenvolverá todo o sistema cerebral. Essa organização e formação ocorre de forma rápida e necessária. No espaço entre cinco dias no ventre da mãe, o embrião já se mostra incrivelmente diferente. As 12 primeiras semanas após a fecundação são essenciais para a formação neurológica. É neste período, no qual muitas vezes a mãe não sabe que está grávida, que se alinha todo o sistema nervoso central e periférico do bebê. É por isso que quando a mãe planeja a gestação é indicado o uso de alguns complementos tal como o ácido fólico para a prevenção de más-formações neurológicas.

No entanto, a formação do feto não é só por uma via. Há informações genéticas, interferências por uso de substâncias, entre outros, que podem alterar o percurso neurológico. Algumas alterações podem ser observadas durante exames no acompanhamento gestacional ou mesmo após o nascimento, outras no decorrer do desenvolvimento da infância.

Após a descoberta de alguma alteração, iniciam buscas e possíveis tratamentos que poderão ser direcionados a cada caso. Isso mesmo, a cada caso, pois realmente é único. Esse processo, individual, é o que nos oportuniza a diversidade, que hoje podemos chamar de neurodiversidade.

Diversos

Esse termo, neurodiversidade, foi debatido no final da década de 90 pela socióloga Judy Singer em sua tese de doutorado no assunto, a qual posteriormente foi transformada no livro “Neurodiversity: The Birth of an Idea”. Socialmente, a ideia de neurodiversidade ganhou ainda maior popularidade a partir do livro “NeuroTribes: The Legacy of Autism and the Future of Neurodiversity”, de Steve Silberman, lançado em 2015.

De acordo com pesquisa em Wikipedia, neurodiversidade é um termo que tenta salientar que uma ‘conexão neurológica’ (neurological wiring) atípica (ou neurodivergente) não é uma doença a ser tratada e, se for possível, curada. Trata-se, antes, de uma diferença humana que deve ser respeitada como outras diferenças (sexuais, raciais e etc.). Os indivíduos autodenominados neurodiversos se consideram ‘neurologicamente diferentes’, ou ‘neuroatípicos’.

Muito se discute hoje sobre ‘padrões’ e convenções biológicas de normalidade esperadas. No entanto, me questiono: sendo o cérebro tão complexo e diverso, sendo influenciado em seu desenvolvimento  por aspectos genéticos de formações ou genética familiar, por padrões culturais, por vivências desde o ventre, tendo influências emocionais das experiências da mãe e ambientais pela ingestão de substâncias por parte da genitora nesta fase, além de muitos outros fatores, pode haver padrão? Podemos afirmar que não haverá particularidades em cada ser que nasce sob tantas influências?

Falar sobre o que é visível, sobre fácies sindrômicas, sobre comportamentos estereotipados, sobre más-formações genéticas ou acometimentos peri ou pós natais, pode ser de mais fácil identificação e classificação. Entretanto, quando há alterações que poderão ser percebidas apenas no decorrer do desenvolvimento humano – não me refiro apenas ao desenvolvimento infantil, mas no decorrer de outras fases do desenvolvimento – aos olhos dos ditos ‘padrões comportamentais aceitáveis’, tal como alterações comportamentais por surtos nos transtornos de humor, por exemplo? Padrões comportamentais esperados na fase do desenvolvimento vital e que podem fugir do esperado, tal como na fase idosa, em inícios de demências ou fugas de padrões. Temos como prever? Você sabe se poderá ser acometido no futuro? Ou em alterações neurológicas por acidentes, tal como traumatismo cranioencefálico grave, aneurismas, acidentes vasculares, com sequelas que mudariam o comportamento e modo de ser.

Assim podemos evidenciar as diversidades, que a princípio são remetidas a condições neurológicas inatas ou adquiridas sob influências ambientais, variações humanas… que fazem o ser tão único dentro de uma diversidade, neurodiversidade que é singular no seu jeito de ser, de passar a entender a vida, de expressá-la. Adaptar-se ao novo, à neurodiversidade, podemos pensar?

Há uma música de uma banda gaúcha que tem o refrão: “todos iguais e tão desiguais, uns mais iguais que os outros”. Diferente do contexto daquela música, mas pensando nesta frase, podemos refletir o quanto realmente somos diversos, biodiversos, neurodiversos… em comportamento, pensamento, vivências, visões de vida. E é o que nos torna únicos. “Uns mais iguais que os outros”, nos faz buscar as identificações de grupos, as formas de ver a vida. E isto é errado? Há certo e errado perante as diversidades? Por que haveria de existir na neurodiversidade?

Cada ser é uma obra singular

Em uma exposição de artes, há várias formas de se analisar o mesmo quadro, ou uma obra de arte. E nenhuma delas é a mais correta, pois cada uma é apenas um ponto de vista. Pensar na neurodiversidade é refletir sobre mim mesma, pensar no outro, sem indiferença, pois há diferença. Diferenças em mim em como entender e aprender na neurodiversidade. Como analisar uma obra única? Posso mudar o ângulo de visão? Mudando o ângulo de visão, posso perceber outros detalhes importantes? Creio que você só saberá, se permitir-se…  O quanto é rico esse aprendizado! Principalmente em um mundo com tantos padrões socialmente e ridiculamente exigidos. Quanto sofrimento psíquico nestes padrões desnecessários que, quando você analisa e aprende, percebe o quanto eles são avassaladores e, ao mesmo tempo, o quanto são libertadores quando você percebe a verdadeira essência da vida. A neurodiversidade vem para este olhar, mas isso só consegue quem analisa o quadro, a obra da sua vida e se permite modificar o ponto de vista, olhar por outro ângulo, sem seguir padrões. Você pode tentar?


Rubieli Silvani Badalotti

CRP 12/04880

Rubieli é neuropsicóloga pelo Cepsic – FMUSP desde 2006.

Atua na Clínica Near (Chapecó/SC) em Avaliações Neuropsicológicas de crianças e adolescentes.